30 Setembro 2004
Figueira. Foi um drama, sem dúvida a juntar a tantos outros dramas pelo Algarve afora, em grande parte abafados. A região tem duas fatias. Uma, por certo a nossa, muito bem ou razoavelmente instalada, debatendo-se com os gravíssimos problemas da política, com os fluxos e refluxos da economia e do bem-estar, com a gestão do orçamento instável e dos impostos irascíveis que alimentam a parte mais alta da fatia, onde moram os nossos amigos e por certo as cunhas, as influências, enfim, o esquema que não anda longe da bandidagem que até atemoriza a Justiça. Outra fatia é a dos marginalizados, dos desenraizados, dos carentes de tudo e onde a pobreza faz o mesmo trabalho do mar nas rochas, o trabalho de sapa que desfaz a pobreza mais resistente nas miséria mais granulada e que é o pasto onde se coitam os marginais, os intermediários de tudo, os criminosos sem rosto que até atemorizam a Liberdade. O pior de uma fatia anda casada com o pior da outra e, eis o resultado por força de insondáveis leis sociais: a desumanidade. Sim, a desumanidade. O abismo chama o abismo e por isso andamos a enganar-nos uns aos outros.
Circo mediático. O padre Domingos Monteiro teve obviamente a coragem de denunciar o circo mediático montado na Figueira, com a televisão obsessiva atrás das caras que, a propósito de um drama, acabam por sorrir em glórias instantâneas, não para as câmaras mas a posteridade efémera da ralé comum às duas fatias. Ao manipular emoções, as mais baixas emoções, a televisão dá a cara da sua irresponsabilidade e da sua impreparação. Em vez de ir ao coração dos problemas, vai exclusivamente às vísceras, à zona onde está o mais podre e onde tudo cheira mal. Mais uma vez, se sentiu que a televisão «está» no Algarve para cheirar, apenas para cheirar.
Os dedos na ferida. Mas o padre Domingos Monteiro corajosamente apontou o dedo para a ferida, para ferida profunda da nossa sociedade, admitindo-se o Algarve ainda tenha ao menos uma sociedade algarvia… E, revoltado, o padre acusou os técnicos da comissão de menores do impensável, insurgiu-se contra a inoperância da assistência social e dos tribunais de menores, denunciou a falta de valores das pessoas, a negligência do Estado, enfim, o vazio (palavra nossa) das instituições portuguesas. Tem razão.
Abismos. Diziam os latinos, muito antes dos séculos destes milénios de missas, que abyssus abyssum invocat, o que traduzido à letra quer dizer que o abismo atrai o abismo mas que entrou com melhor tradução na linguagem corrente com os ditos segundo os quais a asneira puxa asneira e que uma desgraça nunca vem só. Peço ao padre Domingos Monteiro que vá até ao fim para que neste Algarve as pessoas não andem, como disse e bem, «a ensinar músicas às crianças para cantarem no funeral da Joana», de todas as Joanas, as conhecidas e as desconhecidas.
Carlos Albino
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