quinta-feira, 24 de abril de 2014

SMS 561. Europeias, um bico-de-obra

24 abril 2014

Como em todos os parlamentos, os deputados representam os eleitores de todo o território a que digam respeito. Assim, no doméstico parlamento português onde os deputados da Madeira não representam a Madeira, mas o malfadado continente e ilhas, e os do Algarve, no rigor estatutário, também não podem fazer casulo. Os deputados são eleitos por cada círculo para representarem tudo. A rigor é assim, e esse é o argumentário para a disciplina de voto, mas também para impedir que o parlamento se torne numa assembleia parlamentar composta por delegações regionais fragmentárias. No Parlamento Europeu assim também é, muito embora os alemães deixem de ser alemães nas matérias melindrosas que digam respeito à Alemanha, o mesmo acontecendo com espanhóis, franceses, italianos, etc., e com portugueses. Se algum eurodeputado vota contra algum expresso interesse português, independentemente de ser do partido A ou B, cai o Carmo e a Trindade. Daí que, o Parlamento Europeu, não tão raro quanto se possa pensar, acaba muitas vezes por parecer mais uma assembleia parlamentar com delegações nacionais do que um parlamento.

Acresce que, em quase todos os casos, as campanhas ditas europeias, são desenvolvidas mais em função das políticas internas e dos despiques domésticos, do que em torno da política geral europeia. E nas chamadas eleições europeias, o que é europeu fica no abstrato e por vezes ininteligível (é preciso descodificar a linguagem) e o que é nacional é bom, como no velho slogan. Acresce ainda o desfasamento entre as legendas nacionais dos partidos e as dos “partidos europeus” a que se chama famílias. Também acresce que as campanhas europeias mais não são que testes intercalares do xadrês político doméstico, tidos como úteis para avaliar domésticas políticas. E ainda acresce que as listas de candidatos espelham ou procuram satisfazer as ânsias regionais já de si insatisfeitas ou então satisfeitas no doméstico parlamento. Em Portugal tem sido assim, pelo que o Norte, o Oeste, as Beiras, a Madeira, os Açores e de vez em quando o Alentejo lavrado pelo Ribatejo, através dos estados-maiores dos partidos, apenas se não podem é que não entalam um eurodeputado “regional” na delegação “nacional” para a família “europeia”. Para a eleição dos 21 deputados, no próximo dia 25 de maio, assim é, pelo menos por parte dos partidos já rotinados no conhecido exercício dos elegíveis.

No meio disto, para o Algarve as coisas estão pretas. Na lista do PS, Júlio Barroso está no 19.º lugar, não tem hipótese. Na CDU, Paulo Sá está em 9.º, hipótese não tem. No PSD com o CDS mais uma vez à boleia para três eurodeputados, José Mendes Bota figura no 9.º lugar, ainda assim o que pisa a porta desde que o eleitorado nacional não agite demasiado o caleidoscópio. A quem pergunte se interessa ao Algarve ter um eurodeputado em Estrasburgo e nos meandros de Bruxelas, claro que a resposta é: “Interessa, seja de que partido for”.  Não porque o Parlamento Europeu seja praticamente uma assembleia parlamentar com delegações nacionais, mas porque estas delegações são fundamentalmente expressão de pressões regionais. Os partidos que não colocaram nomes de algarvios em lugares elegíveis, nem sequer à porta, têm assim todas as condições para fazerem no Algarve campanha verdadeiramente “europeia” liberta do “nacional” e do “regional”, o que não deixa de ser um bico-de-obra.

Carlos Albino
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Flagrante reforço de agradecimento: A propósito dos dinheiros para as regiões, no que toca ao Algarve já aqui dissemos – “Obrigado, Poiares Maduro!”.  Agora que muita gente já percebeu, reforçamos – “Muito obrigado, muitíssimo obrigado Poiares Maduro!!!”

quarta-feira, 16 de abril de 2014

SMS 560. Duas festas milenares

17 abril 2014

São festas da convivência humana, não são imitação, continuam ano após ano como se tivessem nascido do chão, congregam crentes, descrentes e até quem não é uma coisa nem outra. O concílio de Trento, no longínquo século XVI, cristianizou-as, purgou-as do paganismo, deu-lhes novos nomes. Mas se é verdade que os deuses se foram embora despedidos por justa causa, os nomes ficaram como ficou a finalidade das festas: a convivência. A sã convivência. E quando assim é, uma festa popular nunca é contra o povo, e resiste como festa contra todas as tentativas para a separar das raízes que estão lá no fundo dos tempos e da sociedade. O documento que prova a sua proveniência não está em pergaminho, nem em papel. Está na raiz e no tempo. Refiro-me à Festa das Tochas Floridas ou Festas das Flores de São Brás de Alportel, e às Festas da Mãe Soberana de Loulé (a pequena e a grande) que cumprem a rigor o calendário lunar e assentam em chão fortemente romanizado. As explicações são muitas, cada qual com a sua lenda, a sua ficção e a sua história debitada mais pela intuição do que pelo documento. Mas nota-se que em qualquer dessas duas festas, há algo que não é apenas secular, é milenar. Que se filia em culturas que vêm dos confins do tempo. Aqui, há trabalho para historiadores e ofícios correlativos.

O que importa é destacar que. tal como chegam aos nossos dias, as festas lunares de São Bás e de Loulé são enormes festas da convivência, portentosas festas, resistentes à mística (boa ou má) e à mistificação (bem intencionada ou perversa). Nessas festas, o ator verdadeiro é o género humano com o seu instinto de pacífica apoteose quando se sente em reunião puramente humana, sem deuses, sem chefes, sem cabeças iluminadas. É claro que o pretexto, em São Brás, são as flores e também, um pouco às escondidas (já foi mais) a raiz quadrada do medronho, e que, em Loulé, é a Mãe Soberana (os romanos nunca designavam Diana pelo nome mas por Mater Soberana, assim mesmo). À parte o medronho e Diana, e à parte também o concílio de Trento, ficou como herança dos tempos, a convivência a galvanizar multidões cujas imagens fixadas por um fotógrafo de bons olhos, são imagens da paz em verdadeiros espetáculos da paz. Coisas destas como as de São Brás e de Loulé não se fazem de um ano para o outro, levam tempo, precisam de tempo, de séculos, possivelmente de milénios.

Como dizem os empresários de “eventos”, são espetáculos a não perder. E é pena que o turismo algarvio, perante tais eventos milenares, não ultrapasse o raciocínio analógico. E parou.

Carlos Albino
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Flagrante fronteira: Entre-se no Algarve por onde se entrar e não há uma placa, um post-it pelo menos, a sugerir que aqui ou ali começa ou termina o Algarve. Saudosos os tempos em que o governador civil dava as boas vindas ou em que havia aquele cartaz com uma chaminé da Mealhada e amendoeiras em flor até em agosto… Ao menos um disparate que marcasse a fronteira do Algarve. 

quinta-feira, 10 de abril de 2014

SMS 559. Brutal défice de cidadania


10 abril 2014

Nestas semanas em que tenho contactado mais de perto com comunidades locais sem bases de anonimato social – todos praticamente se conhecem, todos são mais ou menos vizinhos uns dos outros ou primos dos outros vizinhos – têm-me levado a uma conclusão: há um défice brutal de cidadania. Sabia naturalmente que havia grande défice. Nunca imaginei que fosse brutal. Numa sociedade em que, por ser grande, a base do anonimato social impera, a gente não se apercebe bem desse défice, embora o sinta. Mas é disfarçado, ou pelo bom-tom, ou pelo respeito natural pelo cidadão desconhecido, ou por cerimónia, ou mesmo por interesse. E então pensa-se e até se inveja, como serão felizes os que vivem numa comunidade em que todos se conhecem e em que as regras da convivência, desde a convivência quotidiana à convivência política, não fica nos livros mas passeia na rua, está em cada casa, anima cada cabeça. Ora, nada disso!

As regras da convivência, a começar pelas da convivência política, são desconhecidas, cada vez mais desconhecidas e nem se disfarça o desconhecimento como acontece nas grandes sociedades. Nas pequenas comunidades locais até há quem se gabe e sinta orgulho do desconhecimento. Julgava eu que isso apenas se verificaria por resultado da iliteracia galopante, do egocentrismo cavado pelos profetas da Igreja Universal do Reino do Eu, por aí fora. Julgava que isso era próprio dos que, em termos de educação contínua, apenas reconhecem três aulas: a da telenovela balofa,  a do Sport TV e a dos saltitões da televisão pública. Ora, nada disso!

Encontro altos professores, magníficos arquitetos, eminentes advogados, gentilíssimos engenheiros, primorosos médicos, astutíssimos empresários e até santíssimos padres que gerem 17 paróquias, que não sabem nem nunca quiseram saber como funciona uma assembleia de freguesia ou que poderes e deveres tem a junta, que desconhecem os mecanismos básicos de uma assembleia municipal embora conhecendo muito bem os canais informais da câmara da respetiva comunidade local, quer para viabilização quer para torpedeamento daquelas decisões que raramente se livram de colagem a interesses difusos. Quer isto dizer que, se isto fosse futebol, coisa que todos entendem, o resultado seria este: Cidadania, 0 – Espertalhice, 7

Um brutal défice que afeta tudo, desde a Universidade do Algarve à Escola Básica da Fóia, da mansão em Vilamoura à casinha telhada na nascente da Ribeira de Algibre. Voltaremos ao assunto.

Carlos Albino
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Flagrante verdade: O Sporting Club Farense foi fundado a 1 de abril de 1910, um já remoto dia das mentiras. Até parece não ser verdade.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

SMS 558. A dívida de quem nada deve

3 abril 2014

 A palavra dívida arrumou-se ao lado de outras palavras de consolo ou tristeza nacional e que são mais três ou quatro. Palavra que, pelo desmedido abuso político com que é manuseada, acabou por fazer que todo um povo se sinta punido por ter praticado coletivamente algum enorme crime contra a República Portuguesa, contra a Europa e contra o Mundo.

Primeiro, pelas artes matreiras alojadas na política, com uns tais artistas a resumirem a a política ao combate contra outros artistas, ocultou-se ou dissimulou-se que o aumento sem precedentes da dívida foi fundamentalmente devido à crise internacional que marcou o ano de 2008. Depois ninguém quis esclarecer bem qual a parte do endividamento externo público, a parte do endividamento externo privado e, muito em especial, a parte o endividamento do setor empresarial. Apenas se disse claramente que o povo teria que assumir que a dívida é insustentável, para além de duradoura, ficando na glória quem melhor conseguisse ou consiga nque o povo aceite uma culpa que não tem. E vieram os cortes a torto e a direito, na saúde, na educação, nas reformas, nos salários, cortes em tudo para todo o povo castigado. Longas explicações cifradas acompanharam e vão continuar a acompanhar este magistério de que as televisões se encarregam.

Por via da invocação em vão do santo nome da dívida, parece que chefes e candidatos a chefes querem inscrever os seus nomes (de preferência um só) no rol histórico dos homens que reabilitaram o País. Não ouvem ninguém, só eles sabem, curiosamente estando cercados ou mesmo tutelados pelos grandes responsáveis pela falta de previsibilidade das causas efetivas da dívida, senão até responsáveis pelo caminho direto para a crise, com o beneplácito que deram à prolongada especulação financeira a que se atrelou a enorme rede de interesses que cavou o poço da crise e, paradoxalmente, acabaram por beneficiar e beneficiam da dívida. Daí que não queiram ouvir falar de reestruturação da dívida, que não queiram ouvir falar de crescimento e de respeito pelas normas constitucionais, que apenas abstratamente concordem que tal reestruturação deva ocorrer no espaço europeu. O poço da crise é-lhes vantajoso e a dívida assumida pelo povo dá-lhes vantagem nas colunas do desemprego que é um grande mercado de recrutamento, nas colunas do trabalho barato e inseguro, por aí fora.

Como o que tem havido por aí não leva a nada, antes tudo se agrava cada vez mais até porque o tempos dos homens que sozinhos reabilitam países já passou (parece que passou, nunca se sabe) e se não passou termina sempre mal, é claro que, no mínimo, o que se impõe é que, no decisivo nível de representação nacional, haja debate que leve à preparação, em prazo útil, das melhores soluções para a reestruturação da dívida. É o que consta numa petição pública que acabo de assinar.

Carlos Albino
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Flagrante política cultural : Pintura de campanários.