quarta-feira, 16 de abril de 2014

SMS 560. Duas festas milenares

17 abril 2014

São festas da convivência humana, não são imitação, continuam ano após ano como se tivessem nascido do chão, congregam crentes, descrentes e até quem não é uma coisa nem outra. O concílio de Trento, no longínquo século XVI, cristianizou-as, purgou-as do paganismo, deu-lhes novos nomes. Mas se é verdade que os deuses se foram embora despedidos por justa causa, os nomes ficaram como ficou a finalidade das festas: a convivência. A sã convivência. E quando assim é, uma festa popular nunca é contra o povo, e resiste como festa contra todas as tentativas para a separar das raízes que estão lá no fundo dos tempos e da sociedade. O documento que prova a sua proveniência não está em pergaminho, nem em papel. Está na raiz e no tempo. Refiro-me à Festa das Tochas Floridas ou Festas das Flores de São Brás de Alportel, e às Festas da Mãe Soberana de Loulé (a pequena e a grande) que cumprem a rigor o calendário lunar e assentam em chão fortemente romanizado. As explicações são muitas, cada qual com a sua lenda, a sua ficção e a sua história debitada mais pela intuição do que pelo documento. Mas nota-se que em qualquer dessas duas festas, há algo que não é apenas secular, é milenar. Que se filia em culturas que vêm dos confins do tempo. Aqui, há trabalho para historiadores e ofícios correlativos.

O que importa é destacar que. tal como chegam aos nossos dias, as festas lunares de São Bás e de Loulé são enormes festas da convivência, portentosas festas, resistentes à mística (boa ou má) e à mistificação (bem intencionada ou perversa). Nessas festas, o ator verdadeiro é o género humano com o seu instinto de pacífica apoteose quando se sente em reunião puramente humana, sem deuses, sem chefes, sem cabeças iluminadas. É claro que o pretexto, em São Brás, são as flores e também, um pouco às escondidas (já foi mais) a raiz quadrada do medronho, e que, em Loulé, é a Mãe Soberana (os romanos nunca designavam Diana pelo nome mas por Mater Soberana, assim mesmo). À parte o medronho e Diana, e à parte também o concílio de Trento, ficou como herança dos tempos, a convivência a galvanizar multidões cujas imagens fixadas por um fotógrafo de bons olhos, são imagens da paz em verdadeiros espetáculos da paz. Coisas destas como as de São Brás e de Loulé não se fazem de um ano para o outro, levam tempo, precisam de tempo, de séculos, possivelmente de milénios.

Como dizem os empresários de “eventos”, são espetáculos a não perder. E é pena que o turismo algarvio, perante tais eventos milenares, não ultrapasse o raciocínio analógico. E parou.

Carlos Albino
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Flagrante fronteira: Entre-se no Algarve por onde se entrar e não há uma placa, um post-it pelo menos, a sugerir que aqui ou ali começa ou termina o Algarve. Saudosos os tempos em que o governador civil dava as boas vindas ou em que havia aquele cartaz com uma chaminé da Mealhada e amendoeiras em flor até em agosto… Ao menos um disparate que marcasse a fronteira do Algarve. 

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