quinta-feira, 27 de outubro de 2016

SMS 689. Sagres, eis a questão

27 outubro 2016

Não é que todo o gato material e todo o sapato imaterial tenham sido classificados como património da humanidade, mas a forma como o processo de Sagres tem andado enrolado, choca. Quando Sagres se ajusta a vários dos dez critérios para sem favor ser incluído na lista do Património Mundial, choca ver reduzido esse inquestionável símbolo a mera peça de um pacote atado com atilho da globalização que é coisa que dá para tudo – até um grão de areia da Costa da Caparica, bem vistas as coisas, contribuiu para essa visão marciana da Terra.

É verdade que Sagres não representa uma obra-prima do génio criativo humano, mas é prova insofismável (e multissecular, como voltaria a dizer Estrabão) de um intercâmbio importante de valores humanos; é um testemunho excepcional, de uma tradição civilizacional que pontuou a Europa, e é exemplo de um conjunto de elementos tecnológicos e de paisagem que ilustra significativos estágios da história humana (basta olhar para o gigantesco relógio solar de quatro quadrantes, mais do que certo para apoio das actividades náuticas, muito anterior ao Infante). Para citar os termos usados desde 2005 pela UNESCO, Sagres está diretamente associado a tradições vivas, com ideias ou crenças, de destacada importância universal, entra pelos olhos do Atlântico como fenómeno natural e área de beleza natural e estética de excepcional importância, além de exemplo excepcional representativo de diferentes estágios da história da Terra, como registo dos processos geológicos no desenvolvimento das formas terrestres e elementos geomórficos importantes. E como se não bastasse, além do disperso acervo pré-histórico e histórico, Sagres é também exemplo excepcional de processos ecológicos e biológicos significativos da evolução e do desenvolvimento de ecossistemas terrestres, costeiros, marítimos ou aquáticos e comunidades de plantas, ostentando importantes e significativos habitats naturais para a conservação in situ da diversidade biológica, incluindo espécies únicas e ameaçadas que possuem um valor universal excepcional do ponto de vista da ciência ou da conservação.

Neste serviço de mensagens curtas, não se pode dizer tudo de uma só vez. Continuaremos. Sagres merece e não pode ser tratado nem como gato e muito menos como sapato.

Carlos Albino
__________________
Flagrante mentira: O Hospital Central do Algarve.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

SMS 688. Os livros roubados

13 outubro 2016

Tornou-se universal o provérbio islâmico de que se Maomé não vai à montanha, a montanha vem a Maomé. Foi o que aconteceu na sexta-feira 14, quando Ismail Serageldin, o diretor da nova Biblioteca de Alexandria - chamada Biblioteca Alexandrina para não se confundir com a antiga, a que acabaria por desaparecer num incêndio, ainda por esclarecer – quando resolveu mostrar como as novas bibliotecas usarão os meios eletrónicos ao serviço do livro. Veio explicar, ajudado por um power-point ilustrativo, como o futuro terá de associar os dois livros, o impresso e o digital, e como o segundo, filho do primeiro, servirá para criar mais pessoas instruídas, críticas, cultas e mesmo sábias. E veio dizer que, à semelhança do que se passou com os textos escritos no barro, que coexistiram durante séculos com os livros em papiro, e estes com os livros em pergaminho, e estes com os livros impressos em papel, assim os impressos coexistirão, durante muito tempo com os novos, os imateriais, os que se leem no computador e no ipad. Veio dizer que essa coexistência pode ser pacífica, se os meios forem bem utilizados, se os novos bibliotecários forem o que se espera deles - Educadores que terão o dever de guiar os jovens e as crianças na direcção dos livros, quando o mundo comunicacional, de tão intenso, profuso, descontínuo e contraditório, os deixa navegando num espaço sideral de desnorte de informações sobrepostas. Não nos esqueçamos nunca que a palavra desastre significa perder os astros.

Na grande sala da Gulbenkian, encontravam-se bibliotecários do Algarve que, à semelhança das centenas que enchiam o recinto, ficaram com o recado. Trouxeram, por certo o recado. Vamos acreditar que sim. E vamos esquecer, por um tempo, que as estatísticas colocam esta região no fundo da tabela da leitura em Portugal. Vamos imaginar que arrancamos na direção de uma estatística nova, aquela que coloque as crianças e os jovens deste “antigo reino”, num bom lugar da tabela, em relação a esse lugar nascente da leitura que conduz à sabedoria. Neste momento em que tanto se voltou a falar, com razão, nos livros roubados pelo pirata do conde de Essex ao Bispo de Faro, em 1596, o recado do Diretor da Biblioteca de Alexandria em território português deve ser lido como um aviso – Por favor, não se deixem roubar como antigamente, mas agora por vossas próprias mãos. Não queiram ser os roubadores de livros das gerações que se erguem para o futuro, quando tanto precisam deles. Para serem more informed, more critic, more independente. Palavras da montanha.

Carlos Albino
__________________
Flagrante arrepio na espinha: Se é verdade, essa história da Câmara de Faro querer vender uma peça única do Museu Municipal para conseguir umas coroas, é meio caminho andado para a candidatura a Capital Europeia da Cultura…

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

SMS 687. O caminho descendente do petróleo

6 outubro 2016

1.      Não me digam que não gosto do petróleo. Não o detesto nem o odeio. Nunca lhe chamei o líquido pecaminoso, apenas tenho dito que, junto dele, muitas vezes, se tem enroscado o pecado. Nada mais. Mas sempre agradeci que no final do século XIX uns rapazes tivessem começado a imaginar o futuro que foi o do século XX, o século que engendrou duas monstruosas guerras, mas, ao mesmo tempo, guindou-nos para patamares da civilização nunca antes alcançados, muitos deles por via do petróleo. Obrigado, petróleo, esse líquido que chegou aos carros, com uma cor amarelada como se fosse cerveja, mas aos candeeiros de vidro dos nossos avós chegou entre azul e cor-de-rosa, e aos fogões dos anos cinquenta emprestou um odor que ainda hoje há quem o tenha no olfato, um cheiro ácido, de mistura com o da sopa que, sobre três pés de metal, se fervia. Rimo-nos? Não, não nos rimos. Esse era o cheiro do progresso que então chegava à cozinha. Por tudo isso, nunca detestei o petróleo. Só que hoje, desejo que o crude comece a ficar no fundo da terra, para acautelar as nossas vidas, as vidas dos nossos descendentes e a própria sobrevivência da Terra. O seu a seu dono, e cada tempo com o seu. Só que as mensagens, ultimamente, andam confusas.

2.      Muito confusas, mesmo. Os alemães também gostam do petróleo, e já gostaram muito mesmo, criaram máquinas movidas a seus derivados que fizeram avançar a Europa e boa parte do mundo. Espertos? Trabalhadores? Visionários da tecnologia e do progresso mecânico? Sim, claro. Por isso mesmo, não admira que o Parlamento Alemão acabe de aprovar uma lei que impede a comercialização, no seu mercado local, de automóveis novos movidos por motores de combustão, a gasolina ou petróleo, e que isso vá acontecer já a partir de 2030. Esta decisão, já desta semana, dá que pensar. E isto duas semanas depois da inauguração da primeira carreira de comboios alemães movidos a pilhas de hidrogénio…

3.      Dá muito que pensar, sobretudo quando se é português. E ainda mais, quando se é português e se nasceu ou se vive no Algarve. É que aqui, quando o mundo começa a descarbonizar-se, pensa-se na carbonização. Aqui, quando os furos, um pouco por toda a parte, começam a ser reduzidos, preparando-se os países para meterem prego ao fundo, e desacelerarem na produção de energia de baixo carbono, andam umas pessoas, políticos, geólogos e parceiros das petrolíferas, a fazer reuniões mais ou menos controladas, para discutirem os benefícios da exploração do petróleo no Algarve. O que os move? Que convicção? Que interesse? Que ideal? Que clarividência? Que iluminação? Porque querem fazer, agora, aqui, o que nunca se fez, quando a exploração era rentável, e o negócio era lucrativo? Inimigos da nossa terra, tomem cuidado. Há negócios que são demais!

Carlos Albino
________________
Flagrante sabedoria popular: Claro que, em sentido figurado, designadamente para efeitos eleitorais ou pré-eleitorais, continua a ser válido que em terra de cegos o zarolho é rei. Só que nunca será conveniente que esse rei seja o único oftalmologista da terra…