quinta-feira, 5 de junho de 2014

SMS 567. Gil Vicente esteve em Salir

5 junho 2014

Impossível de ser captada por máquinas de fotografar ou de filmar, mas não foi difícil verificar que a alma e o espírito de Gil Vicente esteve em Salir. E que, como todas as almas sem mãos para escrever mais autos e sem boca para os recitar em voz alta, Gil Vicente confiou nas mãos e nas bocas de anónimos para representar o Auto da Espiga, para mim inesperado.

Refiro-me, claro, à Festa da Espiga, portentoso teatro de rua, seguimento de farsas e de monólogos cortantes, enfim, ecos de tudo aquilo que Gil Vicente cultivou há séculos e que nunca me passara pela cabeça que estivesse na alma de Salir neste já adolescente século XXI. E tudo em verso. Versejadores e versejadoras, ali despejaram descrições de costumes, sátira, ironia e irreverências com o acordeonista João Carrusca a fazer alegre ligação às forças telúricas que irrompiam dos carros em desfile. Quem, neste mundo, busca personagens, ali estão ou com cabras trazidas pela mão, ou a propósito do vinho da Nave do Barão, das colmeias de Montes Novos, da padeira dos Toris, das lavadeiras do Almarginho, das mondadeiras das Barrosas, das mil verdades do Portel do Barranco bem provadas pelo medronho das Ameixiarinhas, da Califórnia e das Sarnadinha, da tiragem da cortiça do Barranco do Velho, da matança do porco da Cortelha, da empreita das Palmeiras – nomes e nomes que, por sí só, são poesia como aquele sol que nasce num verso a nascente e se põe no último verso a poente.

Estupefacto, assisti a tudo isto, encostado à casa de José Viegas Gregório que dá nome à biblioteca da terra e com quem mantive cumplicidade na guerra que travou para afirmar Salir, a sua terra, em tudo o que fosse canto onde coubesse uma palavra escrita ou dita. Ele não foi o inventor da Festa da Espiga mas foi ele que a fixou no espaço e no tempo, e a retirou da memória inorgânica certamente herdada de séculos. Não vem para o caso descrever essa cumplicidade, mas, palavra de honra, dei sempre o desconto ao entusiasmo e até à fé dele pelos autos da Espiga. Enganei-me e tive agora a prova. Não só por ali, em Salir, andou Gil Vicente cuja alma nunca se engana em andar pelo lugar da sátira e da ironia, como senti que também o espírito de José Viegas Gregório ali se vingou da minha descrença, ao me apresentar a heroína da festa, a D. Cremilde que há 47 anos é autora, actora e espectadora deste teatro cujo palco é uma rua do princípio ao fim, com Gil Vicente em cada cara. Gil Vicente que, como toda a gente sabe, era ourives e fez a Custódia de Belém em ouro fino. Nada me admira que Salir já esteja a fazer a sua custódia porque ouro e alma já tem. Falta apenas um pequeno sopro para que a sua Festa da Espiga, cheia de sátira, não seja mesmo um caso sério. Um pequeno sopro.
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Flagrante tema: Inacreditável o que acontece em estações ferroviárias do Algarve, sobretudo em áreas que são coração do turismo e da mobilidade dos algarvios. Partindo de um caso (Estação de Loulé-Quarteira), fica para a semana.
Carlos Albino

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