Impossível de ser
captada por máquinas de fotografar ou de filmar, mas não foi difícil
verificar que a alma e o espírito de Gil Vicente esteve em Salir. E que, como
todas as almas sem mãos para escrever mais autos e sem boca para os recitar em
voz alta, Gil Vicente confiou nas mãos e nas bocas de anónimos para representar
o Auto da Espiga, para mim inesperado.
Refiro-me, claro, à
Festa da Espiga, portentoso teatro de rua, seguimento de farsas e de
monólogos cortantes, enfim, ecos de tudo aquilo que Gil Vicente cultivou há
séculos e que nunca me passara pela cabeça que estivesse na alma de Salir neste
já adolescente século XXI. E tudo em verso. Versejadores e versejadoras, ali
despejaram descrições de costumes, sátira, ironia e irreverências com o
acordeonista João Carrusca a fazer alegre ligação às forças telúricas que
irrompiam dos carros em desfile. Quem, neste mundo, busca personagens, ali
estão ou com cabras trazidas pela mão, ou a propósito do vinho da Nave do Barão,
das colmeias de Montes Novos, da padeira dos Toris, das lavadeiras do
Almarginho, das mondadeiras das Barrosas, das mil verdades do Portel do
Barranco bem provadas pelo medronho das Ameixiarinhas, da Califórnia e das
Sarnadinha, da tiragem da cortiça do Barranco do Velho, da matança do porco da
Cortelha, da empreita das Palmeiras – nomes e nomes que, por sí só, são poesia
como aquele sol que nasce num verso a nascente e se põe no último verso a
poente.
Estupefacto, assisti
a tudo isto, encostado à casa de José Viegas Gregório que dá nome à
biblioteca da terra e com quem mantive cumplicidade na guerra que travou para
afirmar Salir, a sua terra, em tudo o que fosse canto onde coubesse uma palavra
escrita ou dita. Ele não foi o inventor da Festa da Espiga mas foi ele que a
fixou no espaço e no tempo, e a retirou da memória inorgânica certamente
herdada de séculos. Não vem para o caso descrever essa cumplicidade, mas,
palavra de honra, dei sempre o desconto ao entusiasmo e até à fé dele pelos
autos da Espiga. Enganei-me e tive agora a prova. Não só por ali, em Salir,
andou Gil Vicente cuja alma nunca se engana em andar pelo lugar da sátira e da
ironia, como senti que também o espírito de José Viegas Gregório ali se vingou
da minha descrença, ao me apresentar a heroína da festa, a D. Cremilde que há
47 anos é autora, actora e espectadora deste teatro cujo palco é uma rua do
princípio ao fim, com Gil Vicente em cada cara. Gil Vicente que, como toda a
gente sabe, era ourives e fez a Custódia de Belém em ouro fino. Nada me admira
que Salir já esteja a fazer a sua custódia porque ouro e alma já tem. Falta
apenas um pequeno sopro para que a sua Festa da Espiga, cheia de sátira, não
seja mesmo um caso sério. Um pequeno sopro.
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Flagrante
tema: Inacreditável o que
acontece em estações ferroviárias do Algarve, sobretudo em áreas que são
coração do turismo e da mobilidade dos algarvios. Partindo de um caso (Estação
de Loulé-Quarteira), fica para a semana.
Carlos Albino
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