quinta-feira, 15 de maio de 2014

SMS 564. Um relógio de parede

15 maio 2014

Aconteceu que um relógio de parede, ao cabo de 30 anos a pendular, parou. Pensava eu que numa cidade como Loulé, havia relojoeiros, não digo um em cada esquina, mas enfim, dois, três, até mesmo quatro que não seriam demais, com dois a dois trabalhando lado a lado. Fui a relojoarias, mas sem relojoeiros para “relógios de parede”, e numa delas lá me indicaram que só teria duas hipóteses para resolver a questão: uma hipótese, era a de tentar naquela tal casa, vinte metros antes de tais semáforos, mas sem certeza; outra hipótese, seria ir a Serpa, ao Museu do Relógio… E perguntei, então em Faro? Nada nem ninguém, responderam. E Olhão, Tavira, Portimão que seja? Nada, não há conhecimento, o homem de Boliqueime deixou o ofício, um outro morreu, aqueloutro ficou com a mão incapaz depois de um ataque, é dos tempos. Ora, gosto muito de Serpa mas ir lá por um relógio de parede, seria fraca homenagem ao bom vinho local e aos bons queijos. Portanto, a única esperança era de contar os vinte metros até aos semáforos. Contei os vintes metros, e de facto, junto a uma janela, lá estava alguém com aquela lupa atarraxada nos óculos, cercado de relógios perfeitamente alinhados como um exército em ordem unida na parada. Respirei fundo. Estaria ali o salvador do relógio de parede.

Foi assim que fiquei a conhecer o senhor José João dos Santos Guerreiro, o resistente e sobrevivente relojoeiro de toda uma cidade e arredores. Entreguei-lhe a peça. E ele, como cirurgião do tempo (um relojoeiro é isto), espreitou, encostou o ouvido para o diagnóstico rápido, e disse-me que, dado o trabalho que tem entre mãos, só daqui a quinze, vinte dias, poderia fazer a operação ao doente. Com toda a delicadeza de profissional de cuidados intensivos, pendurou o relógio vitoriano num prego ao lado de um outro relógio de capela em convalescença. Despedimo-nos, até daqui a quinze dias. Dispensada ficou uma viagem a Serpa.

Mas porque se chegou a isto em matéria de ofícios? Não é por falta de trabalho, nem por falta de gente para trabalhar e que queira trabalhar (deixem-se de patranhas), nem por falta de gente que, não sabendo um ofício, queira aprender algum que bata horas certas com as horas de alguma vocação escondida (deixem-se de patranhas). Chegou-se a isto porque se criou uma espécie de vergonha e até de desonra em torno dos chamados “ofícios tradicionais”, iniciando-se um círculo vicioso que ninguém ousa romper, a começar pelos responsáveis públicos que gerem a legião de desempregados que as universidades e escolas engrossam também já tradicionalmente, por via de cursos desligados da realidade social e que debitam “especialistas em coisas gerais” para setores de trabalho altamente saturados e, mais grave, para atividades supostamente modernas mas empresarialmente inexistentes. Os especialistas especializados com muita honra e prestígio acabam por limpar quartos e sanitas, por serem telefonistas em consultórios dentários, e é uma sorte, sem grande honra. Falamos por metáfora, para não irmos mais longe.

Exposto o problema (o de numa cidade e arredores não haver um relojoeiro a não ser o senhor José João dos Santos Guerreiro, a vinte metros dos semáforos), não nos compete indicar a solução, aqui. Mas noutro local, iremos contribuir para isso. Professor já ou ainda existe: a vinte metros dos semáforos. Pelo que verifiquei, é mesmo professor e não precisa de recorrer à Wiquipédia para operar um relógio.

Carlos Albino
________________
Flagrante correção: Há duas semanas, meti-me com a Mãe Soberana de Loulé, referindo que colocaram no andor uma filha de gesso, engendrada, esta sim, por puro paganismo, e não a mãe secular talhada em madeira de oliveira. Dizem-me que afinal que não era a filha mas a mãe restaurada em Faro e que no restauro ficou com a cara da filha. Assim se prova que tudo o que é restaurado em Faro fica com a cara da filha. As minhas desculpas à mãe, se o reparo que me fizeram for filialmente verdadeiro. Mas que há duas mães, uma das quais pagã, lá isso há. Não há paganismo que não seja filho da mãe.

Sem comentários: