Aconteceu que um
relógio de parede, ao cabo de 30 anos a pendular, parou. Pensava eu que numa
cidade como Loulé, havia relojoeiros, não digo um em cada esquina, mas enfim,
dois, três, até mesmo quatro que não seriam demais, com dois a dois trabalhando
lado a lado. Fui a relojoarias, mas sem relojoeiros para “relógios de parede”,
e numa delas lá me indicaram que só teria duas hipóteses para resolver a
questão: uma hipótese, era a de tentar naquela tal casa, vinte metros antes de
tais semáforos, mas sem certeza; outra hipótese, seria ir a Serpa, ao Museu do
Relógio… E perguntei, então em Faro? Nada nem ninguém, responderam. E Olhão,
Tavira, Portimão que seja? Nada, não há conhecimento, o homem de Boliqueime
deixou o ofício, um outro morreu, aqueloutro ficou com a mão incapaz depois de
um ataque, é dos tempos. Ora, gosto muito de Serpa mas ir lá por um relógio de
parede, seria fraca homenagem ao bom vinho local e aos bons queijos. Portanto,
a única esperança era de contar os vinte metros até aos semáforos. Contei os
vintes metros, e de facto, junto a uma janela, lá estava alguém com aquela lupa
atarraxada nos óculos, cercado de relógios perfeitamente alinhados como um
exército em ordem unida na parada. Respirei fundo. Estaria ali o salvador do
relógio de parede.
Foi assim que
fiquei a conhecer o senhor José João dos Santos Guerreiro, o resistente e
sobrevivente relojoeiro de toda uma cidade e arredores. Entreguei-lhe a peça. E
ele, como cirurgião do tempo (um relojoeiro é isto), espreitou, encostou o
ouvido para o diagnóstico rápido, e disse-me que, dado o trabalho que tem entre
mãos, só daqui a quinze, vinte dias, poderia fazer a operação ao doente. Com
toda a delicadeza de profissional de cuidados intensivos, pendurou o relógio vitoriano
num prego ao lado de um outro relógio de capela em convalescença.
Despedimo-nos, até daqui a quinze dias. Dispensada ficou uma viagem a Serpa.
Mas porque se chegou
a isto em matéria de ofícios? Não é por falta de trabalho, nem por falta de
gente para trabalhar e que queira trabalhar (deixem-se de patranhas), nem por
falta de gente que, não sabendo um ofício, queira aprender algum que bata horas
certas com as horas de alguma vocação escondida (deixem-se de patranhas).
Chegou-se a isto porque se criou uma espécie de vergonha e até de desonra em
torno dos chamados “ofícios tradicionais”, iniciando-se um círculo vicioso que
ninguém ousa romper, a começar pelos responsáveis públicos que gerem a legião
de desempregados que as universidades e escolas engrossam também já
tradicionalmente, por via de cursos desligados da realidade social e que
debitam “especialistas em coisas gerais” para setores de trabalho altamente
saturados e, mais grave, para atividades supostamente modernas mas
empresarialmente inexistentes. Os especialistas especializados com muita honra
e prestígio acabam por limpar quartos e sanitas, por serem telefonistas em
consultórios dentários, e é uma sorte, sem grande honra. Falamos por metáfora,
para não irmos mais longe.
Exposto o problema
(o de numa cidade e arredores não haver um relojoeiro a não ser o senhor José
João dos Santos Guerreiro, a vinte metros dos semáforos), não nos compete
indicar a solução, aqui. Mas noutro local, iremos contribuir para isso.
Professor já ou ainda existe: a vinte metros dos semáforos. Pelo que
verifiquei, é mesmo professor e não precisa de recorrer à Wiquipédia para
operar um relógio.
Carlos Albino
Carlos Albino
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Flagrante correção: Há duas semanas, meti-me com a Mãe Soberana de Loulé, referindo que colocaram no andor uma filha de gesso, engendrada, esta sim, por puro paganismo, e não a mãe secular talhada em madeira de oliveira. Dizem-me que afinal que não era a filha mas a mãe restaurada em Faro e que no restauro ficou com a cara da filha. Assim se prova que tudo o que é restaurado em Faro fica com a cara da filha. As minhas desculpas à mãe, se o reparo que me fizeram for filialmente verdadeiro. Mas que há duas mães, uma das quais pagã, lá isso há. Não há paganismo que não seja filho da mãe.
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