E anda bastante gente a invocar por aí a crise para o que lhe convém. É verdade que há crise, embora a crise de cada um dos portugueses, no seu dia a dia, seja hoje praticamente igual à de cinco, dez, vinte anos atrás… Dos portugueses, na sua maioria. Porque há, de facto, uma minoria de portugueses que, ao invés dessa maioria, apenas entra em crise quando lhe convém – e que boa oportunidade não é esta, para essa conveniência de atemorizar e tanto mais enquanto é tempo. Esta gente invoca a crise como os crentes hipócritas invocam deus – invocam o santo nome da crise em vão.
Crise no Algarve haveria e de que maneira, se de Londres ou de Zurique fossem dadas ordens para encerrar hotéis da cadeia (poucos há fora da cadeia); se não fosse anunciado novo e ainda maior hipermercado depois de inaugurado um outro tido maior do que o da véspera embora todos eles se designem por «grandes superfícies»; se o golfe deixasse de ser ouro, como diz Manuel Pinho; se os casinos deixassem de alimentar o vício do jogo ruinoso para alguns calados da tal minoria que no dia seguinte se queixam da crise perante trabalhadores e credores; se as câmaras deixassem de fazer o inadmissível mas fazem porque vêm aí as eleições (a crise, para algumas câmaras gastadoras até dizer basta, só virá depois das eleições, vão ver); enfim, crise grave haveria se a Política (letra maiúscula, a das ideias e a do debate crítico, não confundir com a política minúscula, a dos cálculos e empregos) não continuasse à espera do dono, na secção de perdidos e achados da PSP de Faro, e por aí fora.
Naturalmente que a crise, a crise financeira internacional provocada por uns tantos anónimos internacionais que não deveriam ficar impunes por terem procedido na floresta do sistema como os predadores na Amazónia, é um facto e que era esperado – seria difícil admitir a vigência das leis da selva no centro da civilização. Mas uma coisa é a crise desses índios e os seus reflexos em Wall Street e nas praças de Londres, Zurique e Frankfurt (o resto é paisagem) e outra é o pretexto da crise usado com desfaçatez no Cachopo ou em Marmeleite. Não chega lá.
Carlos Albino
- Flagrante constatação: Isto a propósito - o pior dos paganismos, o paganismo repulsivo, é o que entra pela igreja adentro.
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