4 Abril 2006
Ali, no alto daquele monte, a vez não é dos políticos, nem dos actores, nem dos animadores de tertúlias, nem dos homens ricos por serem ricos, nem dos pobres encartados por serem pobres e muito menos dos jornalistas. Ali, a digna vez é dos padres, é a vez de um padre que, de ano para ano, se costuma designar por «orador sagrado» e de cuja boca, também de ano para ano, se espera que diga palavras que de alguma forma sagrem a convivência humana e um raro momento em que os inimigos esquecem inimizades, os adversários enterram machados de guerra e os desconhecidos se tratam por conhecidos. Falo da Festa da Mãe Soberana que, em Loulé, leva em triunfo para o alto desse monte largos milhares de seres humanos numa feérica movimentação da qual, uma vez acabada, apenas resta uma coisa que é uma grande coisa – um momento raro de fraternidade humana. Pois, lá no alto do monte e pelas encostas do monte, misturam-se crentes convictos, ateus de conveniência, agnósticos por vários motivos (sendo eu um dos mais fracos motivos), mas também indiferentes por cultura, distraídos da vida arrastados, e pelo meio da amálgama uns quantos desesperados sem causas à espera de um sinal de esperança a que se mistura gente de sucesso para quem a vida tem sido um mar de rosas ou talvez mesmo um pântano de expedientes. O certo é que todos sobem, uns limitam-se a saudar com entusiasmo contagiante, outros acompanham mesmo a Mãe Soberana num exercício secular que apenas pode ter uma explicação que é uma grande explicação – um exercício raro de paz humana, além do mais transbordante de alegria. A isto não se chama espectáculo, chama-se fraternidade.
E mal anda o «orador sagrado» se não percebe isso, se não entende quem tem à frente e se pretende impor um discurso codificado, findo o qual toda a gente, à excepção do próprio, diz que falou muito bem mas não compreendeu rigorosamente nada, apesar da voz bem colocada e da frase bem construída a custa de códigos, tal alguns economistas usam para a crise económica sem nunca enunciarem claramente uma solução ou tal como alguns dentistas para ingloriamente explicarem ao paciente uma terrível dor de dentes não sendo esse o momento para teorias. Foi o que este ano aconteceu, porque há discursos «fraternos» que são contra a fraternidade – prática em que o fundamentalismo, qualquer fundamentalismo (então o islâmico!) é useiro e vezeiro. Pois o «orador» deste ano, vendo aqueles milhares de crânios, o que fez? Desfasado daquela entusiasmadíssima Festa de paz e sem compreender aquela alegre Festa de fraternidade, o «orador» como que descobriu a grande e irrepetível oportunidade histórica de derramar para aqueles crânios as coisas de peso do Antigo Testamento, do Novo Testamento e admito até que do Futuro Testamento, insistindo no filho morto quando todos, todos ali desde ateus a crentes e passando por agnósticos tementes, só vêem o filho vivo, e mais grave, fazendo incidir a oratória sagrada na Mãe Súbdita quando todos, todos desde desesperados a peritos em expedientes da vida só vêem a Mãe Soberana. É claro que, nestas circunstâncias, abandonei o mais rapidamente que pude o alto do monte, como nunca fiz. Ali, ninguém contesta e até todos desejam que a Igreja faça prova de vida o que não consegue com um sermão que nunca se sabe se é mais semelhante ao que no século XVIII antecedia o auto de fé ou se é repetição, ainda que vaga, do que se seguia à purificação dos condenados.
Loulé, melhor, a Festa da Mãe Soberana merece um «orador sagrado», mas um orador que sagre. De outra forma, nem a Mãe Soberana entende porque há no seu património valores que excedem a Festa e que jamais podem ou devem ser alienados – a paz e a fraternidade, coisas entendíveis apenas numa linguagem sem aqueles códigos que não vão ao problema, sem aquela presunção de frase bonita mas que põe em crise a convicção, sem aquelas fórmulas que desumanizam e que por mais que divinamente inspiradas pareçam ser, acabam por dar para o torto.
Carlos Albino
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