quinta-feira, 2 de junho de 2016

SMS 669. Eles sabem manobrar o tempo


Não quero utilizar uma célebre frase de Millôr Fernandes que, em apenas algumas palavras, resumia a diferença da manobra do tempo entre o agir dos que se julgam sábios e o agir daqueles que ingenuamente tomamos por imbecis. Nada disso. Apenas vou parafrasear a sentença dizendo-a em modo suave – Enquanto os líricos discutem na incerteza, os interesseiros assaltam de surpresa.

É precisamente na diferença da função desse intervalo, esse enquanto de que falava Millôr, que estou a pensar, decorrida uma semana após a discussão em torno das concessões para prospecção e exploração de petróleo e gás natural no Algarve. Ao longo de oito dias, os líricos apresentaram argumentos, manifestos, mostraram-se unidos, enraivecidos, invencíveis do ponto de vista da razão, e agora estabelece-se uma pausa durante a qual cada um pensa que isto não vai por diante, que seria uma loucura, e porventura um crime. E como ninguém embarcará numa loucura, e muito menos publicamente perpetrará um crime, podemos dormir descansados.

Não é verdade. Não podemos dormir descansados. Este tempo, o tempo do intervalo durante o qual pensamos que a causa absurda está vencida, por parte dos líricos, é um tempo de trabalho afanoso das partes dos interessados. Enquanto nós dormimos, há quem não durma. Do outro lado, há quem se rodeie de engenheiros prontos a esburacar na terra como se não houvesse pessoas, professores universitários prontos a criarem documentos lógicos que nem tratados de Descartes, como se não houvesse outras lógicas que não as da oportunidade imediata e só para alguns, advogados que invocam leis de há vinte anos, como se o mundo entretanto não tivesse mudado e as leis gerais hoje não fossem outras. Pior do que isso, enquanto nós dormimos, descansados pelo nosso efeito retórico, e pelo nosso movimento musculado, e fazemos uma pausa, os interessados em transformar um património público em património privado, só mesmo para alguns, há quem espalhe panfletos, dê entrevistas, vá junto das populações, e diga que os desempregados de agora, com o petróleo e o gás natural, terão emprego num futuro próximo. Há quem espalhe a falácia de que somos egoístas, queremos andar de carro, mas não queremos contribuir para a produção de gasolina. Isto é, há quem esteja disposto a misturar todas as causas, retirar-lhes o seu contexto e subverter os tempos, e não durma por isso, enquanto os líricos estão dormindo. Por acaso, esta noite, eu estava acordado e vi chegar a notícia de que deputados e especialistas dos Estados Unidos, México e Colômbia estão a relacionar os recentes sismos ocorridos nos seus países com a exploração dos hidrocarbonetos nas imediações, ali vastas. Como se vê, coisa simples.

Carlos Albino
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Flagrante comparação: O que a Escócia recebe, nada perdendo, absolutamente nada, e a suja percentagenzita que querem dar ao País, perdendo o Algarve quase tudo (será o “turismo da alforreca”, e como se sabe, nenhuma alforreca se instala no Conrad).

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