quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

SMS 492. O burro e a vaca

20 dezembro 2012

Se há religião do mundo que tenha dado à humanidade algum símbolo de sublime afetividade e de paz, sem dúvida que essa religião foi ou tem sido o cristianismo mais ou menos já purgado do fundamentalismo que o arrastou para os extremos da inquisição, para as chantagens do confessionário, para as histerias de púlpito e para as incongruências dos apetites pelo poder temporal em, nome de um Deus que, segundo santos bem informados, nunca permitiu isso nem está no seu feitio. E de tudo o que o cristianismo deu de aproveitável para crentes e não crentes, o exemplo mais acabado símbolo de magia afetiva e de poética da paz está indubitavelmente no presépio, construção forjada ao longo de séculos onde o inverosímil é lógica pura, não importando se foi falso ou verdadeiro, importando apenas o símbolo mágico da afetividade e da paz e o código genético da tolerância que todos temos pensado ser a matriz da civilização que transportamos como se fosse uma chama olímpica. E nessa construção mágica e poética do presépio, tudo é importante mesmo que inverosímil, mesmo que se saiba tratar-se de invenção circunstancial a que se foi somando, ao longo dos tempos, a imaginação empurrada pela força simbólica.

É assim surpreendente que o papa, como não tendo mais nada no mundo com que se preocupar, se venha meter com o burro e com a vaca do presépio, pretendendo emendar a história naquilo que não pertence à história. O burro e vaca, tal como o anjo, os reis e as estrelinhas, a palha do menino, a samaritana, os pastores e as ovelhinhas, por aí fora, são peças desse puzzle simbólico que tem sido o jogo anual de paciência para gerações, ponto de encontro de famílias e olhares, enfim, suave magia que pacifica o espírito e dá alminha de paz ao corpo mesmo que esse corpo seja o do pior bruto. Entender-se-ia que o papa questionasse o burro e vaca ao pequeno-almoço com dois cardeais, já não se entende que ele não perceba o que um símbolo e faça doutrina. Por mim, vou armar o presépio de sempre com o mesmo burro e a mesma vaca, justificando-se ainda mais, nos dias que correm, que torne mais vivo esse símbolo de conforto anímico.

Andando pelas ruas, vê-se que as pessoas estão tristes e que as ruas estão tristes. Além de não haver o espalhafato autárquico das iluminações com milhões de lâmpadas da China, é raro ver um Pai Natal pendurado das janelas, um paninho onde se leia o bordado de um Feliz Natal, uma lampadazinha portuguesa a dar um tom de mágica exceção à fachada da casa. Ao menos que, num recanto da casa, haja um presépio, haja uma ceia, haja um presente, haja um símbolo sendo verdade que todo o símbolo tem a sua vaca e o seu burro, tenha Sua Santidade santa paciência na sua frieza alemã pois não foge à regra. E já, agora, que p melhor presente do Natal deste ano seja já o Natal do próximo ano com um milagre, o milagre de que isto mude, o milagre de que haja alguém, inspirando confiança, a dizer basta e que retire os falsos burros e as falsas vacas de um presépio onde não têm lugar. Alguém que reponha o símbolo da esperança.

Carlos Albino
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    Flagrante assalto: Ao Estado.

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