Se há religião do mundo que tenha dado à humanidade algum símbolo
de sublime afetividade e de paz, sem dúvida que essa religião foi ou tem sido o
cristianismo mais ou menos já purgado do fundamentalismo que o arrastou para os
extremos da inquisição, para as chantagens do confessionário, para as histerias
de púlpito e para as incongruências dos apetites pelo poder temporal em, nome
de um Deus que, segundo santos bem informados, nunca permitiu isso nem está no
seu feitio. E de tudo o que o cristianismo deu de aproveitável para crentes e
não crentes, o exemplo mais acabado símbolo de magia afetiva e de poética da
paz está indubitavelmente no presépio, construção forjada ao longo de séculos
onde o inverosímil é lógica pura, não importando se foi falso ou verdadeiro,
importando apenas o símbolo mágico da afetividade e da paz e o código genético
da tolerância que todos temos pensado ser a matriz da civilização que
transportamos como se fosse uma chama olímpica. E nessa construção mágica e
poética do presépio, tudo é importante mesmo que inverosímil, mesmo que se
saiba tratar-se de invenção circunstancial a que se foi somando, ao longo dos
tempos, a imaginação empurrada pela força simbólica.
É assim surpreendente que o papa, como não tendo mais nada no mundo
com que se preocupar, se venha meter com o burro e com a vaca do presépio,
pretendendo emendar a história naquilo que não pertence à história. O burro e
vaca, tal como o anjo, os reis e as estrelinhas, a palha do menino, a
samaritana, os pastores e as ovelhinhas, por aí fora, são peças desse puzzle
simbólico que tem sido o jogo anual de paciência para gerações, ponto de
encontro de famílias e olhares, enfim, suave magia que pacifica o espírito e dá
alminha de paz ao corpo mesmo que esse corpo seja o do pior bruto.
Entender-se-ia que o papa questionasse o burro e vaca ao pequeno-almoço com
dois cardeais, já não se entende que ele não perceba o que um símbolo e faça
doutrina. Por mim, vou armar o presépio de sempre com o mesmo burro e a mesma
vaca, justificando-se ainda mais, nos dias que correm, que torne mais vivo esse
símbolo de conforto anímico.
Andando pelas ruas, vê-se que as pessoas estão tristes e que as
ruas estão tristes. Além de não haver o espalhafato autárquico das iluminações
com milhões de lâmpadas da China, é raro ver um Pai Natal pendurado das
janelas, um paninho onde se leia o bordado de um Feliz Natal, uma lampadazinha
portuguesa a dar um tom de mágica exceção à fachada da casa. Ao menos que, num
recanto da casa, haja um presépio, haja uma ceia, haja um presente, haja um símbolo
sendo verdade que todo o símbolo tem a sua vaca e o seu burro, tenha Sua
Santidade santa paciência na sua frieza alemã pois não foge à regra. E já,
agora, que p melhor presente do Natal deste ano seja já o Natal do próximo ano
com um milagre, o milagre de que isto mude, o milagre de que haja alguém,
inspirando confiança, a dizer basta e que retire os falsos burros e as falsas
vacas de um presépio onde não têm lugar. Alguém que reponha o símbolo da esperança.
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Flagrante
assalto: Ao Estado.
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