Aldeia que é uma pérola encastoada no anel do primeiro dedo que a serra
algarvia mostra, Querença subiu ao noticiário quotidiano por bons motivos.
Nem sempre é assim, ou melhor dizendo, quando se fala no País de uma aldeia do
interior algarvio, por regra, é por assalto e facada em ancião estrangeiro,
incêndio em sete propriedades ou inauguração de lar de idosos ou de creche por
Sua Excelência que por vezes é a pior das catástrofes. Apesar da presença de um
secretário de Estado (oh, céus!) no cerimonial da apresentação de resultados do
projeto pioneiro com universitários para revitalização daquela porção de mundo
que se chama Querença mas que também se podia chamar Presépio Encantado, o
festejo não chegou a catástrofe. O secretário de Estado foi com as duas mãos
cheias de nada e ganhou mais com Querença do que Querença, ou aqueles nove
jovens que fizeram, no fundo, a redescoberta da pólvora, ganharam com ele. Não
é que o secretário de Estado tenha discursado mal, falou até bem, só que foi lá
de mãos a abanar, sem nada para dar, ou seja, foi lá como um secretário sem
Estado. Ora, se o nome de Querença foi ouvido ou soletrado em todo o País, não
foi por essa visita que até poderia ser uma catástrofe de propaganda, mas esse
nome foi soletrado e ouvido pela experiência pioneira de caçar saberes rurais
que o elitismo velhaco desacreditou, de replantar culturas já a finar na
memória coletiva e de património natural já quase todo desidratado, para dar a
essa aldeia novos horizontes que, tal como a experiência provou, são possíveis.
Transformar uma aldeia de rotinas em comunidade criativa não é assim tanto
milagre como Jesus a transformar 280 litros de água em vinho, mas é dar um
destino, um bom destino, a gente conformada com o acaso, com o entusiasmo a
andar de camioneta mas a esperança a andar de burro. E também porque a
universidade foi aos montes e não os montes à universidade, Querença pode vir a
ser um caso, um grande e sério caso, numa sociedade que perdeu a memória, e se
envergonha ou a levaram a envergonhar-se de algumas das suas tradições
marcantes, nomeadamente atirando para o lixo a aba cultural que falta e sempre
faltou ao Turismo. Ninguém sabe, nem os próprios sabem como se chamam os
habitantes de Querença, todos eles nascidos com o traço da prudência extrema
perante opostos, do silêncio medidor de qualquer ruído por pequeno que seja, da
arte de cavar uma trincheira em qualquer diálogo seja este com amigo ou
adversário. Secularmente conservaram e aprimoraram esta cultura, não são muitos,
não chegam a dois mil mas são de Querença e basta.
Carlos Albino
Carlos Albino
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Flagrante e longa explicação: Este apontamento refere-se, para quem não sabe, ao projeto “Da Teoria à Ação – Empreender o Mundo Rural”, iniciativa de nove meses da responsabilidade da Fundação Manuel Viegas Guerreiro e da Universidade do Algarve e que, traduzindo nós, visou a convivência ou cruzamento entre o conhecimento superior da população e o conhecimento básico dos académicos… Ou seja, daquela cultura popular que não é contra o povo, pois 99 % do que por aí corre como sendo cultura popular, é mesmo contra o povo.
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