Não, escrever sobre a crise, não – está nas ruas, entra pela casa,
vê-se nos olhos, adivinha-se no pensamento. Escrever sobre autarcas, também não
– foram eleitos sem contar bem com o que lhes saiu na rifa e em autarquias onde
não há tostão, todos ralham e ninguém tem razão. Escrever sobre a qualidade da
cultura, também não – os muito cultos que por aí há, queimam os últimos
cartuchos e para o ano que vem vamos ter por certo saudades até do
provincianismo. Escrever sobre a segurança, muito menos – bastam os relatos do
dia a dia e a sorte grande de não haver ninguém na família, na vizinhança ou na
terra que não seja assaltado para não se falar da sorte de cada um de nós a
quem esse mal não bateu à porta. Escrever sobre os deputados, também não – uns,
afinal, nada prometeram, outros nada podem fazer porque não contam em número,
em influência e poder, tomara cada um cumprir o mandato nas calmas. Escrever
sobre as portagens, sobre a Via do Infante, sobre a 125, sobre as variantes
prometidas e não concretizadas, sobre as rotundas e seus monumentos e oliveiras
transplantadas, jamais por enquanto – é chover no molhado e quem, por
imperativo democrático, devia explicar mete-se nas suas sete quintas. Escrever sobre o urbanismo, também não porque
quando a construção civil colocava uma girar em cada duna, em cada esquina e em
cada casa sobre outra casa, albergando obreiros clandestinos em contentores ou
cada dúzia num quarto, ninguém quis ouvir e não é agora que vão fazer marcha
atrás porque o mal está feito. Escrever sobre as insolvências às montanhas,
sobre o comércio que fecha, sobre a
agricultura nem foi protegida nem se quis proteger, sobre as oficinas disto e
daquilo que são ilhas rodeadas de dívidas por todos os lados, também não.
Escrever sobre os jovens que saem das escolas sem saberem escrever uma carta e
que consideram um insulto a oferta de um dicionário, também não, sendo inútil
perturbar a avaliação do desempenho de quem tutela o seu ensino. Escrever sobre
o saudoso governo civil? Não - foi extinto e nem se deu por isso. Escrever sobre as iluminações de Natal? Qual
coisa, agora que a generalidade das câmaras de vê aflita para manter a lâmpada
da esquina. Escrever sobre a outrora apregoada linha de alta velocidade
Faro-Huelva? Escreva Durão Barroso que concertou isso com Aznar, já lá vão uns
bons anos, dizendo-lhe eu logo de cara a cara que não acreditava nesse fogacho
populista. Por aí fora… Então o que posso e devo escrever? Posso e devo
escrever sobre o essencial, as coisas essenciais que o Algarve a todo o custo
deve manter, mas que, para tanto, cada câmara, cada município e até já cada
freguesia não se pode comportar como se cada qual fosse um sultanato de costas
viradas para o sultanato contíguo pelo que, para que não restem dúvidas dessa marcação,
colocam placas delimitadoras de território, coladas umas à outras como se fosse
terra conquistada. Ora comecem por arrancar essas placas, que há placas a mais,
e só depois escreverei. Se, sem crise, os sultanatos são intoleráveis, em plena
crise os sultanatos repugnam.
Carlos Albino
Carlos Albino
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Flagrante silêncio: Parece que houve muita alfarroba, pouco figo e que as azeitonas caíram pecas. Mas sobre o negócio da alfarroba, ninguém diz nada, nem os ciganos que andaram às escondidas no rabisco mas venderam e bem.
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