quinta-feira, 17 de agosto de 2006

SMS 171. Dois casos de polícia

17 Agosto

Primeiro caso: o espavento dos cassetetes. É hábito antigo – vou àquela estação de serviço comprar jornais, encher o depósito do carro, trocar as bilhas de gás e, como é ponto de encontro de quem vai ou vem, há sempre dois dedos de conversa num encontro inesperado de Agosto. É verdade que, por esta época, a discoteca em frente, onde o fim da madrugada equivale à manhã alta do comum dos mortais, despeja o inacreditável para as bermas do cruzamento daí lavando as mãos ou pensando que lava as mãos. É igualmente verdade que a autoridade policial também há muito sabe que o desacato é, naquelas bandas, uma rotina diária, pelo que a mais elementar das regras da ordem pública sugeriria, para ali, uma prevenção constante em vez da repressão à última hora. Mas não – ao espectáculo da visível degradação humana estampada nos rostos dos que saem da discoteca, volta e meia soma-se o espectáculo da degradação da segurança, o espavento circense de suposta força a dissimular a fraqueza do sistema de prevenção que, desde logo, deveria atacar as causas pela raiz como em todo o mundo civilizado onde há discotecas desta espécie e produtos deste género, se faz. Esta semana presenciei o simultâneo desses dois espectáculos degradantes, cada um vivendo do outro. Uns cinco ou seis rapazes filhos da noite, perante larga assistência de primos-irmãos da mesma confusão entre madrugadas e manhãs, embalados pelo produto interno bruto da sua longa madrugada, tentaram fazer o que todas as manhãs fazem – uma detestável prova de vida através do desacato e da provocação. Perante isto, desceram-se as grades de ferro da estação de serviço, a porta encerrou-se transformando aquilo numa jaula, alertou-se a autoridade, chega um carro patrulha, chega outro em sentido contrário, mais outro em contra-mão com brusca travagem e ligando a sirene para afastar quem estava no bom sentido, outro ainda mais e por fim um jeep certamente preparado para transportar delinquentes. E eis como um bom número de agentes empertigados de bastões no ar perante meia-dúzia de rapazolas cuja heroicidade precária se esgota em enfrentar a autoridade fardada – porque, na ausência de prevenção, é isso o que apenas querem, julgando-se nivelar – transformam amiúde aquele pacífico e afável ponto de encontro numa faixa de Gaza.

Segundo caso: Valentina Calixto. Em nome do chamado Plano de Ordenamento da Orla Costeira, expirado um prazo de dez dias no dia 7, marcou-se para fosse executada à noite, ou pela calada da noite, a demolição de quatro apoios de praia em Quarteira. Para já, não se percebe porque é que o Estado, pessoa de bem e que não tem propriamente alma de vagabundo, tenha que executar essa boa acção pela calada da noite e não à luz do dia. Depois, muito menos se percebe que a vice-presidente da CCDR, Valentina Calixto, perante o fracasso dessa operação secreta, tenha comentado que «a acção revelou-se mais complicada do que se esperava» porquanto, disse ainda, «o empreiteiro não deu garantias de desenvolver o trabalho durante a noite»... Esta obsessão de executar demolições legais à noite e com os directamente implicados a dormir, é que choca – não é humano e só pode partir de quem tem do ambiente uma daquelas noções que mais contribuem para o aquecimento global . E choca porque a lei é lei, e sendo lei, é legível durante o dia mas torna-se ilegível quando tenha que ser executada apenas pela calada da noite por um empreiteiro que «dê garantias» de apenas fazer «o trabalho» como polícia nocturno. E mais ilegível se torna quando as próprias autoridades marítimas tomaram posições para essa guerra esconsa, sabendo-se afinal que a Capitania de que dependem, emitiu e cobrou licenças válidas até 30 de Setembro, pelo menos para um dos apoios na mira. Mas, deixando a Capitania com as suas licenças, suponhamos que uma dúzia, duas dúzias de chalés, sobretudo os que, a partir de apoios semelhantes aos de praia ou pouco mais do que isso, se ergueram na Ria Formosa, que não cumprem o POOC ou que um POCC a sério deveria tornar ilegais, um dia destes são demolidos pela calada da noite por um empreiteiro que «dê garantias de desenvolver o trabalho». Claro que chocará «um trabalho» desses durante a noite ou que apenas tenha que ser feito à noite, e, como diria Valentina Calixto numa ironia ao ambiente, «a acção revelar-se-á mais complicada do que se esperava». Fiquemos por aqui.

Carlos Albino
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Flagrante contraste: o barulho de José Vitorino e o silêncio de José Apolinário.

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