Com o tempo, a
realidade torna-se lenda. No cemitério de Boliqueime está sepultado um juiz
de Albufeira que, a seu pedido, não quis ser enterrado na sua terra. Pelos
finais dos anos quarenta do século que passou, insurgiu-se contra intervenções
e construções nas linhas de água, ficando isolado na sua opinião inabalável.
Pouco tempo depois das suas advertências, ocorreria uma das várias tragédias
que têm enlutado Albufeira, cada qual não servindo de emenda. Como resposta aos
que não o ouviram, o juiz deliberou descansar para a eternidade numa campa em
terra longe da sua e dos surdos. E ali estão os seus restos que, a cada
tragédia tanto mais grave quanto maior é o disparate, se fazem lendários.
Voltou a acontecer.
A febre imobiliária,
com sua teia intrincada de interesses que implica várias profissões de
interesse público e várias entidades que em vez de darem cobertura ao interesse
público colocam a céu aberto o contrário, leva a que não se possa ver um centímetro
quadrado livre para a Natureza, para a sua lógica imparável e que não se mede
pelo diâmetro de caneiros, sendo imprevisível em cima dos estiradores e dentro
dos gabinetes dos despachos técnicos. Traçar avenidas e erguer enorme massa de
edifícios onde as ribeiras deviam continuar ribeiras disponíveis para o
previsível e para o previsto, é brincar com o acaso da Natureza e com o destino
de quem não sabe se a sua cama pode ser a sua campa, e se os seus bens podem
ser a sua perdição. Não há seguro que compense os efeitos de um erro que lesa o
interesse público desacautelado, de nada valendo ocultar as causas pelos
efeitos.
Tal erro não existe
apenas em Albufeira, está espalhado por todo o litoral algarvio. O sonho
efémero de fazer grandes cidades onde a doutrina da Natureza aconselha a que se
façam apenas as cidades possíveis e com os seus elementos na dimensão e
localização, naturalmente que forçará qualquer juiz das coisas a sentenciar que
a sua campa fique longe, tornando-se tragicamente em lenda. Hoje as águas, amanhã
um sismo, oxalá que não, e fora do registo da nossa memória curta, os próprios
movimentos isostáticos da Terra – por aí temos cidades de outrora sepultadas no
mar ou mostrando seus vestígios nas arribas muito acima das nossas cabeças.
Mas se a coisa é
grave quando o imprevisível acontece, mais grave é quando não se tem em
conta o previsto. Um perito em metereologia que comigo se corresponde,
bastante, muito antes da entidade competente ter disparado um alerta colorido,
enviou-me um email a dizer isto: “Infelizmente
receio o pior e na minha humilde opinião de profissional na área, as nossas
autoridades já deveriam de ter lançado Alerta Vermelho para o Baixo Alentejo e
sobretudo o Algarve, dada a situação, para as pessoas salvaguardarem bens e
mesmo por segurança pessoal, atempadamente!”. Depois de alertar para a
possibilidade de inundações relâmpago para o SE de Portugal, “onde poderão ocorrer acumulações de
precipitação acima dos 100 mm
em 9/12h e, dado o tipo de fluxo, suas características, coberto vegetal e tipo
de solos da região, poderão ocorrer
problemas”, advertia que “temos de acompanhar a situação entre as
00h. e 18h dia 01 Novembro 2015, em especial no Sotavento algarvio mas podem
ser mais abrangentes nesta parte do território”. Terminava assim: “Espero estar enganado... mas se ocorrerem,
vai dar problemas sérios”. Creio que não vale a pena discutir comportas,
diâmetro de caneiros, seguros, e muito menos olhar para as nuvens ou enterrar a
cabeça na areia escavada a repor o leito natural para o curso das águas. O mal
está feito. Mal cujas causas é que devem ser sanadas e discutidas à cabeça.
Carlos Albino
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Flagrante quadratura do círculo: Disse o Ministro da Administração Interna, Calvão da Silva, no seu terceiro dia de exercício, a propósito da tragédia de Albufeira, que “Deus nem sempre é amigo”. Pelos registos bíblicos, só o diabo diz uma coisa destas.
1 comentário:
“Deus nem sempre é amigo”
Esqueceu-se de adicionar que referiu
"A quantidade de pessoas que me disseram (já assinei o seguro) isto é uma lição de vida para todos nós"
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