quinta-feira, 14 de março de 2013

SMS 504. Pedragosa à chuva


14 março 2013

Sempre detestei a crónica dos passarinhos. Refiro-me aos apontamentos líricos sobre o céu azul, as ondas do mar, os rebentos verde-claro da Primavera e outras delícias com que a prosa dos jornais e revistas se enche aos fins de semana, para se fugir da realidade. A poesia da província está repleta desses enlevos românticos, em que o recanto do nosso quarto permite imaginar que o mundo é apenas a ampliação dos nossos malmequeres. Confesso, detesto esse tipo de apontamento. Fujo dele, amo por demais as pessoas da minha terra e do meu país, para incitar a que adormeçam a sua sede de justiça e de verdade.

Mas neste domingo passado, fiz a minha crónica dos passarinhos. Cansei-me da Troika e dos jogos que acontecem dentro de gabinetes, atafulhados em silêncios de onde só saem uns fumos de notícias, sempre demasiado traumatizantes de modo a que a triste realidade apenas um pouco mais leve, seja aceite por todos. De degrau em degrau, cada vez mais duro, cada vez mais drástico, cansei-me dessa espera. Cansei-me da troca dos sapatos vermelhos de Bento XVI pelos sapatos castanhos, cansei-me de não se entender o que as pessoas pretendem quando cantam Grândola e de surgirem patriotas a dizerem que antes se cante O Coro dos Escravos de Verdi - Oh minha pátria, tão bela e tão perdida!... Cansei-me, quando nós não temos ópera, não a produzimos, produzimos, sim, coros de homens com serrão e chapéu preto, unidos, ombro a ombro, reclamando uma pequena justiça, a justiça da repartição de um baixo soldo que sobeje dos negócios dos outros. Cansei-me, e meti-me no carro ao acaso, enfiei pela Estrada da Pedragosa, a caminho do interior do Algarve. Os campos estavam molhados, a chuva batia nos vidros, o tempo recuava até um tempo sem casas, quando no meio das casas, a escrita tinha desaparecido, e a contrariá-lo, apenas se podia ler, entre os pingos da chuva, o aviso a vermelho, escrito num velho casarão AQUI, CABRAS, NÃO. Um aviso primitivo, rude, como se fosse no tempo de Caim e Abel. E a paisagem lá estava. Bela, altiva, resistente, desafiando a alma. E eu pensei que sim, que em dias assim, quando a sociedade civil parece destinada ao auto-flagelo, ainda resta a consolação de uma crónica de passarinhos.

Carlos Albino
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    Flagrantes jogos: As contas e cálculos de alguns que por aí já não se fazem quanto a listas para as legislativas, ainda as autárquicas vão no adro. Quanto mais provincianos nos tornamos, mais o rei vai vestido.

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