15 Abril 2004
Esclareço, antes de tudo: a minha rua não entrou e possivelmente jamais entrará na história mundial, embora não fique a destoar de muitas ruas já célebres do Afeganistão, do Iraque e mesmo da Somália famosas por aquela selvajaria que é a irmã gémea da poeira suja, do ruído agressor e da falta de decoro. E sendo uma rua de Loulé, não foi certamente por causa da minha rua que Loulé se tornou cidade. No entanto, para os que vivem nesses cento e vinte, talvez cento e cinquenta metros e para os que aí nasceram conservando o lugar do berço como dever sagrado - pelo que legitimamente continuam a dizer «a minha rua» - trata-se de uma rua inacreditável. Os veículos, entre abandonados, à venda por oitocentos euros ou mesmo os de gama impante, além de num exercício de anti-civismo escroque ocuparem em absoluto os passeios assim tornados intransitáveis, também estacionam em segunda e em terceira fila até ao traço central que os homens camarários, há duas semanas, andaram a pintar no alcatrão num louvável assomo de modernidade, pelo que esse traço acaba por ser útil como guia único para as centenas de crianças saídas das aulas, para os velhotes de bengala e para as mães com carrinhos de bebé que se afoitam às curvas para evitar o carro furioso que vem de baixo e as grandes motas de escape aberto que vêm de cima como nos espectáculos do poço da morte. E ali estão dezenas de motos sobre a calçada com lavagens oficinais para a valeta pública onde poeiras e óleo fazem pasta. Além, há bilhas de gás, e mais além, bilhas de gás há que não estoiram porque não há acidente nem acasos e os bombeiros estão perto. Naquele espaço público de recanto, dezenas de grades vermelhas de vasilhame seguem a rigor a opção estética habitual em Casablanca. E por aí se aproxima o dia em que pessoa particular pede ao presidente da Câmara uma ingénua licença de ruído, mas como vem acontecendo há anos com a maior das impunidades, no que uma simples licença de ruído resulta? Pois chega a resultar no corte da via pública e na transformação da rua em grande esplanada de frango assado e sardinhada, com palco de origem municipal armado e ligação da energia à rede de distribuição pública – tudo isto, imagine-se, para celebrar um exótico santo popular que ninguém conhece naquelas paragens mas que corresponde ao nome geral dos donos do estabelecimento comercial assim favorecido e que consegue a proeza e os genitivos da proeza – está lá o poste metálico, inclinado já a quinze graus, à espera da função e do regabofe dos favores administrativos. Não falarei já dos ruídos de um pequeno bar feito discoteca por sua vez feito sala de espectáculos com música ao vivo aleatoriamente nos mais elevados decibéis até às três, quatro, cinco e seis da madrugada que já outro dia; não falarei dos donos dos cães e do que estes fazem por aqueles, ambos sumindo-se no que imaginam deixar para trás invisível; não falarei do facto de se ter perdido já a memória da pressão da água de uma agulheta a limpar os dejectos, as lamas, os óleos e os ossos dos cães que se acumulam nas rodas dos carros abandonados e não falarei dos ralis inglórios que o rapaz camarário faz com seu carrinho varredor que nada pode varrer onde deveria varrer; não falarei do lugar onde houve um grande chafariz, derrubado para aí surgir um chafariz pequeno mas onde até os burros iam beber sozinhos aprendendo o caminho de cor e que acabou por ser igualmente derrubado para dar lugar a uma sebe com um poste ao meio, como acontece em todas as ruas famosas do terceiro mundo. No entanto, apesar desta evidente qualidade de vida que a minha rua oferece, lá vou acarretando para aquela casa onde nasci, os meus livros e documentos que certamente doarei a sítio público de Loulé. Não tenho é coragem de convidar ninguém para lá ficar um dia ou pernoitar uma noite que seja – a «qualidade de vida» da minha rua de Loulé equivaleria a um castigo que os meus amigos não merecem.
Carlos Albino
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