quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

SMS 698. Mário Soares, as plantas na casa do Vau

12 janeiro 2017

Dizem que o loureiro conhece o dono, segue-o na sua vida, e se acaso o dono morre, o loureiro chora por ele. Consta que, se tal acontece, as folhas murcham, secam e muitas vezes não voltam a enverdecer.

Na Casa da praia do Vau, naquele fim de tarde de setembro, as árvores do jardim estavam verdes, mas não sei se havia algum loureiro. Se houvesse, e nessa tarde em que mostrou o jardim, o descreveu e lhe atribuiu autorias, e se lhe tivesse falado dessa inclinação do loureiro para chorar pelos seus donos, por certo que Mário Soares teria rido a bandeiras despregadas, e teria dito que isso era coisa para acontecer nos lugares das ditaduras e não nas democracias. Como se sabe, nas pátrias de Nicolás Maduro, os pássaros falam ao ouvido do ditador, na Coreia do Norte, o povo entusiasta vê caírem gotas vermelhas das nuvens quando correm más notícias sobre Kim Jung Woon… É melhor, pois, não invocar os sentimentos das plantas nas pátrias democráticas. Mário Soares, para isso, só teria como comentário a imensa gargalhada e uma história cómica a propósito. Nesse dia, o penúltimo em que nos encontrámos, ele falou antes dos pinheiros que tinha plantado, e da forma como as copas haviam alastrado, como as raízes e a caruma faziam mal à rua e à casa, mas ele, Mário Soares, não lhes queria tocar. Eram plantação antiga, tinha dó de os destruir. Isto é, ao contrário das lendas que fazem com que as plantas chorem pelos donos, há donos que têm sentimentos pelas plantas, como se elas fossem seres humanos. É a inversão da lenda.

Então Mário Soares levou-nos pelos recantos do jardim e falou do jardineiro, do amor do seu jardineiro pelas plantas, e nomeou-as uma a uma. Havia piteiras, sargaços, buxos e buganvílias. Recantos, repuxos, regatos. Mas o que nos admirava não era que o seu jardim algarvio ali estivesse para lhe criar uma atmosfera vegetal onde se pudesse recolher. Era o conhecimento que Mário Soares tinha das plantas do seu jardim, como se fosse um aprendiz de botânico. E quando lhe disse que certa piteira diferia da outra, e porquê, ele respondeu – “Ah! Sim, pois eu não sabia. Ainda bem que o disse. Quer dizer que precisa de rega diferente…”

Não, ninguém quer que se louve Mário Soares como um anjo, ou como um santo. Não o foi. Foi simplesmente um homem. Só que há diversas espécies de homens. Mário Soares pertence ao grupo daqueles que, tal como Goya num dos seus últimos quadros a si mesmo se pintou velho e desgrenhado, acrescentando com a seguinte legenda – “Aún Aprendo”.

Que eu seja um desses que, até ao fim da vida, ainda aprenda, nem que seja apenas sobre a natureza de uma piteira brava.

Carlos Albino
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Flagrante dedicatória: Dedico este apontamento a João Soares, a Isabel Soares e à memória de Maria Barroso.

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