quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

SMS 695. A caminhada humana

1 dezembro 2016

Não sei quem foi que inventou a imagem de três Reis Magos caminhando no deserto, ao lado dos três camelos, e juntou, escrita na areia, a máxima de que Sozinhos vamos mais rápidos, Juntos, vamos mais longe. É linda a frase, e ainda mais linda a junção à imagem que nos acompanha desde sempre, a figura de uns reis, que afinal seriam uns sábios, talvez astrónomos, em busca de uma nova estrela que surgira nos céus. O assunto dá para desmentir, dá para falar de fantasia histórica, dá para viver em suspeita em relação a esses ícones, sobretudo desde que o Papa Bento XVI colocou o burro, a vaca e as manjedouras no local das invenções infantis. Foi um choque. A partir daí, todos os presépios estremeceram, a crença na gruta para onde recolheu Maria, para dar à luz o filho, ficou desgastada e a frieza dessa noite passou a dar voltas no calendário. Enfim, um abalo telúrico que ocorreu na alma. Mas, passados poucos anos, a suspeita foi desaparecendo e a iconografia voltou em força.

Porque voltou? Porque há imagens de ternura que são mais fortes do que todas as outras. Porque precisamos de cenas de amor primordiais que nos acompanhem, porque vivemos com a criança que fomos desenhada no nosso peito, mesmo que a escondamos. Que uma criança nasça sem berço, que os animais a aqueçam, que essa extrema pobreza seja o lugar para onde se dirigem pastores e ovelhas, são imagens que nos lembram que o mundo se faz de ligações simples, arcaicas, lugares para onde regressamos sempre.

Basta um desentendimento entre países, basta interesses instalarem-se entre a diplomacia do mundo, basta que se abatam interesses contra interesses, ideologias contra ideologias, e logo pessoas aos milhares, saem das suas casas, das suas terras, e ficam reduzidos ao corpo humano coberto pro uns farrapos, a andar à deriva. Ou, segundo o título do livro de Herta Müller, Tudo o que tenho trago comigo. Às vezes basta um título para designar toda uma época. O presépio aí está, por vezes fica no meio do Mar Mediterrâneo, por vezes fica no meio da Europa, por vezes sem burro, sem vaca, sem manjedoura até. O princípio dos desprovidos sempre, aqui e agora. O que significa, então o Natal? Talvez fosse bom mandar calar todas as sanfonas que atordoam os supermercados dos países em paz, para escutarmos a razão dos outros. Talvez fosse bom substituir as legendas que obrigam agressivamente à despesa, por uma única frase de amor entre irmãos, e sabedoria de sobrevivência na Terra – Sozinhos vamos mais rápidos, acompanhados vamos mais longe. Essa deveria ser a nossa estrela do Oriente. Pois o que somos nós sozinhos?

Carlos Albino
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Flagrantes intervalo: Nos petróleos. Depois do fim das coisas em terra, aguardemos o que vai acontecer para o mar. Longe da vista, longe do coração.

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