quinta-feira, 28 de agosto de 2014

SMS 578. Arte pública e coisas afins

A urna de pedra rodeada ainda de calhaus substituídos rapidamente por calçada
28 agosto 2014

Admito que este apontamento esteja destinado a não receber grandes aplausos dos chamados setores implicados, mas depois de ter observado muita arte pública por aí plantada no Algarve e muitas coisas afins que, sendo gostos privados, se impõem à vista pública e à paisagem comum de todos, não adio o comentário que também há muito ferve. É que aprecio muito as obras do Siza Vieira e do Souto Moura mas confesso que me repugam as sizanices as soutelezas que, com vistos e aprovações camarárias, colocam nas cristas dos montes com o mar ao fundo, brigando com tudo, rompendo com tudo, adulterando tudo, estragando tudo. Qual património paisagístico, qual enquadramento arquitetónico, qual padrão estético, qual bom gosto, qual bom senso! Há, no Algarve, casas novas, construídas de raiz, que se justificam sem dúvida no Pólo Norte para esquimós, ou no Pólo Sul para donos de pinguins. Há “monumentos” que, Santo Deus, não passam de brincadeiras de crianças. Um, por exemplo, destinado a homenagear os Combatentes, não passa de uma urna de pedra para um soldado desconhecido com cinco metros de comprimento e, mesmo assim, ficando este com as botas de fora – mais grave, não se vendo as botas. Além disso, com uma frase inscrita na chapa de pedra atribuída a Camões e invocando os Lusíadas. Assim mesmo: “Ditosa a Pátria que tais filhos teve”. Ora nem Camões escreveu isso, nem consta nos Lusíadas, nem o que deveras escreveu se destinou, no plural, a combatentes da I, da II ou da III Guerra, mas, no singular, a Nuno Álvares Pereira – Ditosa a Pátria que tal filho teve (Os Lusíadas, VIII, 32, 5). Este erro crasso e, por assim dizer, esta falta de respeito por Camões e pela sua obra maior, está à beira de escolas.

Culpa da câmara, do seu presidente de ocasião ou do vereador circunstancial? Claro que não. Possivelmente ninguém tem culpa, embora alguém seja ou tenha que ser responsável. Uma asneira nunca cai do céu. A a asneira dá azo à asneira seguinte, que tanto pode ser a viabilização de uma sizanice que põe em crise a paisagem, seja esta urbana ou rural, seja a asneira que transforma uma praça redesenhada numa armadilha pública, por exemplo, com a introdução de regatos e mais regatos onde qualquer cidadão desprevenido pode partir uma perna. Brincadeiras de crianças arvoradas em arte pública, feitas ou concebidas por quem não foi eleito mas que impõe a quem foi eleito critérios mais que duvidosos e erros crassos.

E porquê, isto? Porque, para a arte pública, falta escrutínio público. Mas falta também a atenção da Ordem dos Arquitetos que, na matéria, tem deveres públicos e responsabilidades igualmente públicas. Siza Vieira é que não tem culpa das sizanices no alto dos montes com mar ao fundo e Souto Moura culpa não tem dos regatos que vão partir pernas.

Carlos Albino
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Flagrante balde da água fria: O encerramento do Pátio das Letras, em Faro, após o encerramento de outras livrarias no Algarve. Dirão que a FNAC vai abrir em Faro e os supermercados e hipermercados vendem livros como amêijoas do Japão, sobretudo livros mais destinados a curar a disfunção do que as amêijoas. Todavia, oh cidade, diz-me as livrarias que tens e dir-te-ei quem és.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

SMS 577. “O senhor sabe com quem está a falar?”

21 agosto 2014

Tem sorte, muita sorte, quem não ouve, por dá cá aquela palha, da boca de alguém a quem se fez reparo calmo e justo, a seguinte resposta de dedo esticado e apontado ao peito: “O senhor sabe com quem está a falar?” Há gente que vem ao Algarve por dois dias e meio e procede como se entrasse numa colónia na qual todos os indígenas são mainates. Outros que aqui se estabelecem e pensam que, após mês e meio ou dois anos, a integração lhes dá o direito a serem superiores aos indígenas. Outros ainda que, sendo indígenas, julgam que deixam de o ser, imitando quem se julga com o rei na barriga mal passa as portagens de Paderne. Se por pouco não atropelava o pobre peão, e este interpela com um “por favor, tenha mais cuidado”, lá vem a resposta do homem ou mulher do volante: “Você sabe com quem está a falar?”. Esta semana, por exemplo, contaram-me que um reconhecido oficial superior do exército à paisana com sotaque beirão adaptado a alfacinha, atravancou com o seu carro, a entrada de uma garagem particular. Quem queria sair, teve que esperar que o ilustre desfardado almoçasse, bebesse, risse e até falasse mal dos algarvios – “Uns bárbaros! Uns mal carosos, malcriados até dizer basta!”, houve quem ouvisse. Chegado ao carro, o dono da garagem, com paciência de santo, apenas observou: “O senhor estacionou mal…” e foi o suficiente para pergunta colonial – “Você sabe com quem está a falar?”

É claro que nem todos são assim ou assim procedem, embora cada vez mais sejam as exeções à regra. E na generalidade dos casos, a coisa fica por breve discussão, com o malcriado a partir para o anonimato que o deu à luz. Já é grave, quando o malcriado, em vez de desaparecer no horizonte dos filhos de pai incógnito, tem uma tribuna pública, generaliza a resposta de algum mainate menos paciente, inverte os factos, escreve, por exemplo, uma crónica moralmente destinada ao todo nacional intitulada “Os Algarvios”, e enfrenta os indígenas todos e sem exceção, com a mesmíssima pergunta do perverso desfardado: “Vocês, algarvios, sabem com quem estão a falar?” Também é claro que sabemos – estaremos a falar com alguém que se julga da pura raça ariana e que pensa ter bota suficientemente grande para esmagar os donos legítimos da pequena e modesta garagem.

Que os Algarvios não o imitem, são os nossos votos. E, se lerem uma crónica dessas, se limitem a perguntar: “Julga que a gente não sabe esperar até que o senhor perca a sobranceria da farda com que gostaria de passear, ficando tão feio em calções de banho?”

Carlos Albino
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Flagrante surpresa: Não se retira uma linha ao anterior apontamento sobre associações sem associativismo e sobre subsídios que só por si fazem associações, como se conclui de uma dissertação de mestrado, apesar de verde e com lacunas. Mas foi uma surpresa, quando na leitura de pormenores, se verificou que a dissertação foi dedicada pela autora, aos pais, a uma irmã e… “Ao meu gato Ruca”. Para não se humilhar o gato, mais não se diz.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

SMS 576. Tal como a água se some na areia

14 agosto 2014

Por vezes a gente embate com um estudo criterioso, com uma pesquisa fundamentada e com uma conclusão que se devia respeitar, não como artigo de fé, mas como pista para melhoria da Sociedade, e é como se agente embatesse com um meteoro, um pedregulho à deriva e que depois do embate, à deriva continuará por esse caos das inutilidades, sem aproveitamento, submergindo na escuridão. As universidades estão cheias desses pedregulhos que resultam em mestrados e em doutoramentos em número e com temas sem fim, muitos deles que deviam fazer parte do acervo da Política e basear as decisões, planos e programas políticos, mas, desaproveitados, ficam a andar por aí às curvas desaparecendo como meteoros nos confins. Ou, tomando como metáfora, verificações mais próximas dos olhos, são como a água que se some na areia. A Universidade do Algarve também tem disso, e se a sua água se some, a culpa não será da universidade, mas da areia dos poderes, todos, dos locais aos centrais, qual deles melhor ou pior que o outro. Se a conclusão incomoda e colide, some-se.

Ora aconteceu que, andando eu por esse caos, embati com o meteoro de uma dissertação de 2011, em sede da Faculdade de Economia da Universidade do Algarve, precisamente com este título: “O Universo Associativo no Concelho de Loulé - Formas de interacção entre a Câmara Municipal e as suas Associações: estudo de caso”. Foi uma dissertação para a obtenção do grau de Mestre em Administração e Desenvolvimento Regional, da autoria de Carina Castanheira Guerreiro, que não conheço mas que logo lhe retirei o peso da metáfora de meteoro errante, vendo que se trata de boa água, tão boa que não devia sumir-se na areia. Certamente que haverá mais estudos sérios, envolvendo o Algarve no seu todos ou nas suas partes, e sobre os mais diversos temas de elevado interesse para a Sociedade.

O trabalho é longo, 329 páginas, estou a ler atentamente, até porque 2011 não é assim tão longínquo. Vou pela metade, mas já deu para validar a conclusão enunciada à cabeça: “Os resultados confirmam as hipóteses de partida, isto é, o Associativismo Louletano está muito dependente dos subsídios atribuídos pela Câmara, subsídios que são pouco objectivos e criteriosos, existindo o risco de alguma arbitrariedade. Paradoxalmente, assiste-se a um aumento do número de associações, mas ao mesmo tempo, a uma diminuição da participação pública. Podemos concluir, pois, que na ausência de uma definição estratégica municipal, o Movimento Associativo Louletano não é parte integrante das políticas públicas locais. Esta é, afinal a característica mais relevante das políticas públicas locais de primeira geração”.

Claro que, com uma conclusão destas em 2011, a água teria que sumir-se pela areia e, hoje em 2014, a areia está seca. Para conveniência geral: dos que beneficiam do caos e dos que são beneficiados por tudo isto andar à deriva. Todavia, oportuna adversativa, parabéns Carina Castanheira Guerreiro. Mais vale tarde que nunca.

Carlos Albino
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Flagrante constatação: A Comunicação Social do Algarve, toda, das empresas a agentes devia começar por duas coisas simples: a legalidade e a transparência. Devia deixar-se das paredes-meias. Ninguém nisso sobrevive em verdade, e, sem isso, invocar a Ética é o mesmo que invocar o santo nome de Deus em vão.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

SMS 575. Orquestra do Sul, uma metamorfose

7 agosto 2014

No passado dia 2 de agosto, a Orquestra do Sul fez um ano. À mesma data, se fosse viva, a Orquestra do Algarve faria doze. Para comemorar o nascimento da segunda e o adeus à primeira, houve um concerto no Conrad Hotel, e ao que parece nenhum presidente de câmara do Algarve assistiu. Foi pena, fizeram falta. Deveriam ter estado para contemplar aquilo que a sua incompreensão levou à falência. A falência de um projeto que os seus antecessores e as forças económicas que movem o Algarve não permitiram fazer vingar em tempo útil.

Ninguém duvida da dificuldade de manter uma orquestra sinfónica digna desse nome e conceito, numa região em que os principais cultores da música clássica são os residentes estrangeiros, e os amantes nacionais, não tão escassos quanto isso, no momento de sair de casa, primam por outras escolhas. Um erário público deficitário, uma crise financeira instalada a nível nacional, e uma moda internacional de tudo desmantelar para agradar aos mercados, fizeram o resto. Demasiada adversidade contra um sonho belo. Para não se fecharem as portas e vender-se em hasta pública casacas e violinos, os responsáveis fizeram o que lhes pareceu possível ser feito – Transformaram a sinfónica numa orquestra versátil. Na noite do primeiro aniversário, passou-se da ópera ao jazz, do jazz ao fado, do fado à eletrónica, e como mostruário, foi bem sucedido. Nós ficámos a saber do que a nova orquestra é capaz, e os investidores presentes, se os havia a sério, folhearam um mostruário. O problema é que da versatilidade à metamorfose vai um breve passo.

Onde vai parar a Orquestra do Sul?

Parece que em breve irá acompanhar a fadista Gisela João, e que se seguirão outros e vários acompanhamentos. Casamentos? Jantares de ocasião? Cómicos? Danças de roda? Emanuel? Batizados? - Cuidado. Quem nos avisa nosso amigo é. A noite da celebração do primeiro aniversário foi simpática, e dói escrever estas linhas. Mas nas mesas redondas sobre as quais se serviu um magnífico jantar, muitos fizeram silêncio com receio da metamorfose. Em breve, o rebento que saiu da Orquestra do Algarve poderá não mais ser um sítio honrado para os grandes intérpretes, como no caso, felizmente, foi o trompetista Francisco López, e o barítono Job Tomé. Quando isso acontecer, nós todos seremos responsáveis. Por não nos movermos, não dizermos, não nos cotizarmos, não exigirmos, não mostrarmos que o Algarve precisa de música diferente da que se ouve nos supermercados e se escuta nos telemóveis. Confesso, na inevitabilidade da escolha destes hibridismos, eu não queria dormir sobre a almofada onde os que dirigem a Orquestra do Sul repousam a sua cabeça. Mas ficaria de mal com a minha consciência se não lembrasse que um híbrido tem de manter a natureza do seu elemento fundador intacta, de contrário, está destinado a perder-se na sua metamorfose e a morrer.

Carlos Albino
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Flagrante falta: Agora, sim. Faz falta um Congresso do Algarve, com reuniões regulares e que seja a voz plural e institucionalmente credível da Região. E não apenas uma assembleia circunstancial de boas vontades. Não se vê outra instituição que possa fazer isso, a não ser a AMAL. De outra forma, toleramos que isto se transforme numa freguesia de Évora.