quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

SMS  604. Entrevista coletiva

26 fevereiro 2015

Senhores médicos, advogados, arquitetos, autarcas, dirigentes distritais, diretores de hotéis e jornalistas, bem vindos a esta sala e por favor ocupem os vossos lugares nas cadeiras que vos estão reservadas. Muito agradecemos que cada um aguarde a sua vez para responder, lembrando que temos à vossa disposição, serviço de tradução simultânea para português para que ninguém diga que não entende:

1 – Senhores médicos, como se sabe há falta de médicos no Algarve, designadamente em determinadas especialidades em que haver poucos para muitos, é a alma do negócio. Podem dizer se é verdade ou não que médicos de outras zonas de País que querem trabalhar no Algarve, não o conseguem, porque esbarram com barreiras protecionistas do mercado da saúde que por aí mercadeia sem escrutínio ?

2 – Senhores advogados, é verdade ou não que a imobiliária que necessita dos vossos distintos serviços se move com dinheiro por fora, condição designadamente colocada por nacionais de países que querem dar lições aos portugueses?

3 – Senhores arquitetos, por que motivo, nuns sítios e nuns tempos, os projetos, sobretudo nos chamados centros histórico e nas zonas rurais, têm de obedecer a características invocadamente tradicionais, paisagísticas, etc., e noutros sítios e noutros tempos, se faz e aprova o contrário da véspera em função da sintonia ou não entre ateliers privados e gabinetes públicos?

4 – Senhores autarcas, podem com rigor distinguir nesta casa comum que é o Algarve, o que é para VEXAS a sala de estar e o quintal? E já agora, que distinção VEXAS fazem entre poder local e poder central localizado sob disfarce?

5 – Senhores dirigentes distritais, podem VEXAS esclarecer se atuando no Algarve são Algarvios, ou são Emissários com as características dos decisores em Terras de Missão?

6 – Senhores diretores de hotéis, podem Vossas Excelências garantir que Zurique, Londres, Paris, Madrid e Frankfurt não são autarquias do Algarve?

7 – Senhores jornalistas, podem definir o que é uma avença seja esta formal ou informal?

Apenas perguntamos, já que perguntar não ofende.

Carlos Albino
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Flagrante SIADAP: Não será difícil perceber que o SIADAP é a guerra civil dos funcionários que funcionam muito na quantidade e muito pouco na qualidade.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

SMS 603. Nestes tristes dias

19 fevereiro 2015

A verdade é que o Algarve é a região do País onde o desemprego mais subiu. E não se viu por aí grande preocupação pelas causas e pelos efeitos. A verdade é que há fome e ou se oculta ou se disfarça. E a verdade também é que, em contraste, para muitos o Algarve é uma região de enriquecimento fácil à custa de expedientes. Faltam médicos, mas a coisa está discretamente montada para impedir a vinda dos médicos que queiram vir para cá, para proteção de pequenos reinos e reinados. Falem os advogados e digam se é verdade ou não o chamado dinheiro por fora, sobretudo na imobiliária. Falem os arquitetos, os engenheiros, etc., e digam se é verdade ou não que a transparência, os jogos de influência e de interesses moram numa travessa. Falem os autarcas e digam se é verdade ou não que a generalidade dos funcionários está proletarizada, fazendo o estritamente necessário ou menos que isso, altamente preparados para lidar com a burocracia cada vez mais asfixiante. Falem os professores e digam se é verdade ou não que a maioria está desinserida da sociedade, o mesmo acontecendo com juízes, magistrados.

Não há região, a regionalização recuou vinte anos e a preparação séria para isso é uma cópia disforme dos valores que a regionalização supõe. Não há participação porque também os potenciais participantes esbarram com os cenários montados, pré-determinados e pré-moldados. A representação política está nas lonas e a crise do sistema aparece por todos os lados, com meia-dúzia a falar em nome de todos e, paradoxalmente, em nome da “identidade” do Algarve.

E começou já um pouco por todo o lado a corrida para as próximas autárquicas, as listas para as legislativas estão a ser geridas como os deuses gerem os seus segredos, o populismo anda por aí na militância de gente que parece séria e que sobrevive à custa de uma sociedade que não fala em voz alta porque não tem as bases do anonimato social nem pode ter pela diminuta base demográfica, e à custa também de uma sociedade que não tem comunicação nem local e muito menos regional, coisas não só dispensáveis como até inconvenientes.

Como é que esta gente se há-de preocupar com o desemprego gritante, com os desvalidos mais que muitos, com os que passam fome geralmente pela calada, com os que os que sofrem e morrem por uma saúde pública em derrocada e uma saúde privada sem controle, sem escrutínio? O caso que aqui se referiu por alto na semana passada, é verdade: uma pequena intervenção cirúrgica num olho custou 2000 euros no Algarve e a mesma intervenção cirúrgica no outro olho custou 50 euros na Alemanha… Isto diz tudo: há um algarvio com um olho algarvio de 2000 euros e o outro olho alemão de 50 euros. Tristes dias e mal de quem expõe o seu estado alma em voz alta.

Carlos Albino
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Flagrante pergunta: Já se pergunta, à falta de melhor dúvida, se “o meu coração é árabe”. E os rins, a bexiga, a vesícula, etc., não serão também árabes? Ficam de fora? Triste cóltura.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

SMS 602. A morte das amendoeiras

12 fevereiro 2015


Já delas se disse tanta coisa, que cobriam de neve os caminhos, que Deus por via delas escrevia versos algarvios com tinta de luar, que eram Meninas da primeira comunhão, ascéticas, descendo da montanha à beira do caminho em procissão. Já foi notícia obrigatória nas primeiras páginas dos jornais, já foi cartaz turístico e bilhete de identidade de encher os olhos, já foi riqueza quando chegava ao miolo, alimentou lendas, deu como verdade que um rei mouro desposara uma rapariga do norte da Europa, à qual davam o nome de Gilda. Tudo isso não serviu de nada. As amendoeiras estão à morte, abandonadas. Não são varejadas, não são podadas, não são tratadas e estas com sorte porque as que não têm essa triste sorte são arrancadas e substituídas por umas exotices compradas na Guia. Não revigoram, o rei mouro já perdeu a coragem para dar ordem para que em todo o Algarve se fizessem plantações de amendoeiras, a “Bela do Norte” volta a estar em pranto e soluços, a Gilda volta à sua tristeza mortal de não ver os campos cobertos de neve, como na sua terra, e os poetas, desde os de alto gabarito aos de fatela, já não têm matéria-prima para patranhas rimadas.

Há, aqui e ali, algumas chapadas com essas flores de janeiro e fevereiro, mas são resistências de um sonho moribundo. Num momento em que tanto arquiteto e engenheiro paisagista por aí apareceu e cresceu como erva nas burocracias municipais e estatais, ninguém acode à moribunda apenas porque supostamente não tem valor no mercado, perdeu expressão económica e ficou derrotada pelas amêndoas vindas de todo o lado apesar destas não terem sabor algum, embora bem embaladas como acontece para o embuste ser aceite – “sabem a amêndoa”, e é quanto basta para encherem as prateleiras dos aspiradores dos dinheiros locais. É a morte das amendoeiras, numa mortandade que atinge igualmente as alfarrobeiras e as figueiras. E como um mal não vem só, os detentores do saber tradicional também estão a desaparecer, sem se recolher e fixar o que sabem. Há também, aqui e ali, uns choradinhos, umas nostalgias efémeras, umas leituras de Cândido Guerreiro, uns românticos tardios que quase convencem que a lenda foi um facto. Mas as amendoeiras em flor no Algarve já não são notícia anunciadora da fertilidade da Mãe Natureza e muito menos pretexto para a fotografia, para o cinema e para fixar o domicílio das Belas do Norte que para o Algarve vêm reformadas tal como o rei mouro já se reformou. Mas ainda há flores e as que chegam ao fruto com a sua semente, sabem muitos, têm um sabor inigualável e incomparável, além de um imenso valor económico escondido, não aproveitado, como a Gilda, que era esperta, conhecia. Ou não percebesse de neve o suficiente para enganar o mouro.

Carlos Albino
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Flagrante advertência: Muita cultura, por aí, não passa de cóltura que é como o peixe frito em óleo velho.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

SMS 601. Quadra inédita de Aleixo

5 fevereiro 2015

A situação foi-me descrita, já lá vão uns bons anos, por quem ouviu relato direto. Volta e meia contei o caso em alguns sítios e em certa ocasião, também já lá vai tempo, tive a sensação de que uma quadra que Aleixo de repente atirou a quem ele julgou que a merecia, estava desatualizada, completamente fora do contexto e que pertencia à pré-história de um país cuja mentalidade era suposto que tivesse sido reformada. Esta semana, nem sei porquê, a quadra de Aleixo subiu à memória e, para espanto meu, está atualizada em função do que ouço, do que vejo e, mais importante, do que sinto – aquilo que por vezes a gente ouve e vê trai ou atraiçoa o que sente. Ora, verifico que essa quadra do genial Aleixo não trai nem atraiçoa. Vamos ao caso.

Estava Aleixo a trabalhar nos jardins da Quinta do Alto, quando a viúva de Júdice Fialho recebeu no palácio farense o poeta António Botto. No meio de um almoço, a viúva anfitriã comentou para Botto que “temos aí um homenzinho simples a trabalhar no jardim que dizem ser poeta”. Boto não hesitou em solicitar a presença do homenzinho. A viúva, no receio do homenzinho sujar o salão e estragar a solenidade do repasto, resistiu mas Botto levou a melhor e o homenzinho foi chamado. Aleixo entrou com o chapéu na mão, olhou, olhou, nada disse. A viúva repreendeu-o: “Então, Aleixo, não dizes nada? Diz uma dessas tuas quadras para este senhor ouvir”. E Aleixo, nada. “Fala! Não sejas malcriado!”. Aleixo, nada, e cada silêncio com o olhar a fixar os nutridos pratos mais enfurecia a viúva Fialho já disposta a expulsar o homenzinho do salão. Então Botto decidiu atalhar observando que Aleixo talvez se sentisse envergonhado e daí o seu silêncio. “Aleixo, fala!”, voltou a vúva à carga. Para evitar o desfecho previsível da cena, Botto dirigiu-se a Aleixo nestes termos: “Caro colega. Peço-lhe que me diga uns versos seus que é a melhor forma de nos conhecermos”. Parce que estas palavras convenceram Aleixo que levantou o rosto, fixou os olhos da viúva e disse num daqueles seus repentes:

“Anda toda esta canalha,
De banquete em banquete,
Enquanto o Povo que trabalha
Come o caldo sem azête.”

Sei que, dito isto por Aleixo, Botto fez questão de passear com ele pelos jardins, com a viúva a observá-los pelos vidros da janela. Creio que. além da quadra, a figura da viúva está atual. Anda por aí.

Carlos Albino
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Flagrante comparação: Quem viveu a situação garante – uma intervenção cirúrgica num olho custou dois mil euros (2.000 €) no Algarve, e intervenção do mesmo tipo no outro olho, duas semanas depois, custou cinquenta euros (50 €) na Alemanha… Estão a ver os palácios que se constroem por aí, não estão? Há mais.