quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

SMS 602. A morte das amendoeiras

12 fevereiro 2015


Já delas se disse tanta coisa, que cobriam de neve os caminhos, que Deus por via delas escrevia versos algarvios com tinta de luar, que eram Meninas da primeira comunhão, ascéticas, descendo da montanha à beira do caminho em procissão. Já foi notícia obrigatória nas primeiras páginas dos jornais, já foi cartaz turístico e bilhete de identidade de encher os olhos, já foi riqueza quando chegava ao miolo, alimentou lendas, deu como verdade que um rei mouro desposara uma rapariga do norte da Europa, à qual davam o nome de Gilda. Tudo isso não serviu de nada. As amendoeiras estão à morte, abandonadas. Não são varejadas, não são podadas, não são tratadas e estas com sorte porque as que não têm essa triste sorte são arrancadas e substituídas por umas exotices compradas na Guia. Não revigoram, o rei mouro já perdeu a coragem para dar ordem para que em todo o Algarve se fizessem plantações de amendoeiras, a “Bela do Norte” volta a estar em pranto e soluços, a Gilda volta à sua tristeza mortal de não ver os campos cobertos de neve, como na sua terra, e os poetas, desde os de alto gabarito aos de fatela, já não têm matéria-prima para patranhas rimadas.

Há, aqui e ali, algumas chapadas com essas flores de janeiro e fevereiro, mas são resistências de um sonho moribundo. Num momento em que tanto arquiteto e engenheiro paisagista por aí apareceu e cresceu como erva nas burocracias municipais e estatais, ninguém acode à moribunda apenas porque supostamente não tem valor no mercado, perdeu expressão económica e ficou derrotada pelas amêndoas vindas de todo o lado apesar destas não terem sabor algum, embora bem embaladas como acontece para o embuste ser aceite – “sabem a amêndoa”, e é quanto basta para encherem as prateleiras dos aspiradores dos dinheiros locais. É a morte das amendoeiras, numa mortandade que atinge igualmente as alfarrobeiras e as figueiras. E como um mal não vem só, os detentores do saber tradicional também estão a desaparecer, sem se recolher e fixar o que sabem. Há também, aqui e ali, uns choradinhos, umas nostalgias efémeras, umas leituras de Cândido Guerreiro, uns românticos tardios que quase convencem que a lenda foi um facto. Mas as amendoeiras em flor no Algarve já não são notícia anunciadora da fertilidade da Mãe Natureza e muito menos pretexto para a fotografia, para o cinema e para fixar o domicílio das Belas do Norte que para o Algarve vêm reformadas tal como o rei mouro já se reformou. Mas ainda há flores e as que chegam ao fruto com a sua semente, sabem muitos, têm um sabor inigualável e incomparável, além de um imenso valor económico escondido, não aproveitado, como a Gilda, que era esperta, conhecia. Ou não percebesse de neve o suficiente para enganar o mouro.

Carlos Albino
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Flagrante advertência: Muita cultura, por aí, não passa de cóltura que é como o peixe frito em óleo velho.

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