quinta-feira, 19 de maio de 2011

SMS 412. Bandeira ao vento

19 maio 2011

Sim, a identidade é um caleidoscópio – agita-se e os mesmos elementos surgem sempre diferentes. A gente bem pode estar ver o Algarve antropológico e até se pode julgar que se vê, mas ao mínimo movimento as peças desarrumam-se e o que se pensava ser um genuíno contributo de Aljezur em nada passa a diferir de Castro Marim. E com o Algarve sociológico? Mexam o assunto que aquilo que aparece arrumado se desarruma como em todo o lado. O que será então “ser Algarve” que leve a considerar que alguma coisa, conforme a fronteira, possa “não ser Algarve”? Traçar a identidade no mapa é fácil – todos sabemos que, por aquela linha, Almodôvar não é Algarve e que o Vascão, ribeira que de vez em quando parece arremedo de rio, é metáfora política em momento de prova de vida. Só que o mapa não é critério podendo ir mais além ou ficar mais aquém e nomes de mapa são nomes – tanto podem servir para certidão de nascimento como para epitáfio. Também fácil será demarcar a identidade pelas tradições ou por aquilo que, segundo a tradição, se julga ser a tradição, por aquilo que é velho e sabido costume... Muito da identidade do Algarve tem sido escavado por aí, por vezes escavado até à exaustão e à ficção, diga-se. E então “ser Algarve” será mais ou menos o que “era”ou se julga que “foi Algarve” e, não se indo além do circunstancial, ou a tradição atropela a História ou é esta que atropela a tradição. Fica assim sem explicação, aquele corridinho polaco a um canto, a cataplana polaca noutro canto, o gnómon de Sagres mais velho que as urtigas na sala corporativa de historiadores rasos, a chaminé dos lares romanos ao abandono e à espera que a substituam por uns buracos em cimento moldado à macaca na Mealhada, um “mák’jêto” a figurar na palhaçada da anedota, umas chapadas de cal para a fotografia ou uma velha muito velha a cavalo num burro, mesmo que isto seja corriqueiro na Sicília, uns quantos advérbios idênticos aos de Trás-Os-Montes e outros filhos da Galiza sem que se saiba ou queira saber como voaram sobre as Beiras e o Alentejo, uma aguarela de um caíque e haver aguarela é uma sorte, uns folhetos do turismo que, sobre o Algarve, nem sequer copiam a parte melhor da velha enciclopédia de que Mário Lyster Franco foi o redator regional... E andamos nisto há anos, sem o trabalho de identificar o Algarve pelo reconhecimento dos valores ou pelo entendimento dos elementos de coesão que existem no Algarve, mesmo os seus elementos nómadas, e que determinam que o Algarve seja isso mesmo e não mera bandeira ao vento.

Dá para continuar.

Carlos Albino
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Flagrante questão: Não será adequado pedir-se à televisão da Andaluzia para, no interesse público, dedicar atenção ao Algarve? Em castelhano que seja.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

SMS 411. A identidade

12 maio 2011

De vez em quando vem à boca de uns e à cabeça de outros falar da “identidade algarvia”. Coisa fácil. Difícil é dizer o que será isso. Politicamente, o Algarve, sim senhor, foi um reino ao longo de séculos mas sem alguma vez ter possuído instituições de reino ou deixar marca de autonomia organizativa, o que foi o mesmo que não ter sido nada – era um penacho em cima de uma cabeça, penacho herdado do pai e deixado como penacho para o filho. Com o regime republicano, até o penacho desapareceu – ninguém foi Presidente da República de Portugal e do Algarve – e vieram boas doses de tardias manifestações românticas à mistura com evocações sérias e algumas até fundamentadas para dar alguma identidade a isto. Foi assim que as amendoeiras já cobriram de neve os vales por onde também corriam alegres odaliscas e, segundo as conveniências, onde igualmente se colava à paisagem alguns mouros mas não muitos para que os cristãos da identidade encantada gozassem à vontade o prato, nesse delírio em que até se via em cada chaminé um minarete de mesquita. Foi essa uma época em que a identidade algarvia tinha poesia oficial e até um poeta oficial – Cândido Guerreiro. Mas também já foi a época da identidade marítima, com o Infante D. Henrique por todos os cantos, cada caíque a fazer de pai e mãe das caravelas, Lagos e Sagres em linha reta com o Brasil, Olhão a navegar pelas estrelas, enfim, sem o Algarve Portugal não teria dado novos mundos ao mundo. Paralelamente, a reforçar essa onda de identidade, também houve tempos em que lá surgia Tavira como a Veneza do Algarve para quem quisesse ver, e para quem não pudesse ver, os livros de Teixeira Gomes eram expostos como os manuais de identidade da terra. E agora?  Nem penacho, nem odaliscas, nem dois mouros a fugir nus com uma faca de cana na algibeira, o Infante está reduzido a um monumento funerário no enfiamento da A2 com a 22, o Agosto Azul de Teixeira Gomes perdeu a cor, as amendoeiras de Cândido Guerreiro dão amêndoa amarga, os caíques foram-se...

Na próxima semana há mais sobre identidade.

Carlos Albino
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Flagrante documentário: Perante estes protagonistas que se nos oferecem, serve o expediente da Euronews para evitar palavras sobre coisas que doem: No Comments.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

SMS 410. Uma pedrada no charco

5 maio 2011

O que acaba de sair das mãos de Macário Correia, esta semana, é uma pedrada no charco. Há anos que, com insistência, alguns jornais regionais, ou por via de notícias ou por via de comentários, vão dando conta de situações insustentáveis e inadmissíveis de burocracias municipais, sobretudo quando está em causa alguma pretensão de obras particulares, algum projeto ou licença de construção, algum parecer que cheire a perspetiva de financiamento, ou mesmo casos corriqueiros. Perante 300 processos pendentes, 50 funcionários que preparam para despacho apenas sete a oito processos por semana, havendo um caso de 2008 em que o documento já passou por 63 fases sem que até agora tenha havido solução, o presidente da câmara de Faro foi direito ao assunto: quatro processos disciplinares abertos, aviso geral a chefes de departamento e de divisão que outros se seguirão, reunião com as chefias de viva voz a comunicar que a guerra não era a brincar. Mas segundo reporta o jornalista Idálio Revez (Público, terça), em função da mesma experiência por que passou em Tavira onde ninguém foi punido, Macário Correia chega à conclusão de que “a lei é corporativa e defende a incompetência”.

Investidores com quem tenho esporadicamente falado, alguns lá fora, e sobretudo cidadãos comuns à hora do café que é quando se confidencia muita verdade mas com o indispensável e desesperado pedido do “não diga nada, guarde para si, porque senão será pior”, têm-me dado conta de situações inacreditáveis e não apenas em Faro – é pelo Algarve todo, designadamente nos municípios com litoral. E posso aqui afirmar também que, pelo que conheço e sei, essa burocracia de raça perigosa como alguns cães que mordem sem razão aparente, é pior no Algarve do que noutras regiões onde também há infracções sinónimas desse tal laxismo que a lei não pune, mas, pelo menos, há vergonha na cara suficiente para se cumprir o código de procedimento administrativo, com destaque no capítulo do atendimento de quem requer, de quem pergunta, de quem solicita – há por aí gente que trata o cidadão com ar de Pitbull, e, destacando também as letras, desculpem-me os justos estarem a pagar pelos pecadores. No Algarve, sei e tenho presenciado casos que bradam aos céus, e que implicam desde o quadro técnico que sabe como não deixar uma perna de fora, até ao fiscal camarário que anda por aí, ora abrindo, ora fechando os olhos, conforme... 

É claro que presidentes e vereadores, a quem compete aquelas decisões a que por comodidade se chama “decisões políticas”, são eleitos, e acho bem que, se sentem o charco, atirem a pedra e verifiquem se por lá já não há bicho a mais – é no seu próprio interesse, pois ninguém vai votar ou voltar a votar em quem tolera que se leve anos para fazer o que em muitos casos se pode fazer de um dia para o outro. Também é claro e por demais evidente que os “quadros técnicos” não dependem de eleições mas de regulamentos e do seu próprio arbítrio, critério, capacidade e, mais, dependem do seu perfil de alma - coisas que saem do tear que dá roupa para as saias muito largas.

Carlos Albino
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Flagrante evidência: Para isso continuar assim, os governos civis deveriam ser extintos como tais e convertidos em delegações do ministério da Administração Interna que é o que são.