quinta-feira, 31 de março de 2016

SMS 660. Longe do Gabão

31 março 2016

A única forma de testar os sistemas é ir ao encontro dos casos particulares. Este descreve-se assim.

Imagine-se alguém que seja submetido a uma operação melindrosa na sexta-feira antes do Domingo de Ramos, e que vai para casa na segunda-feira seguinte. O pós-operatório é muito delicado. Imagine-se que na madrugada de Domingo de Páscoa a pessoa não se sente bem, cai e parte os braços. Imagine-se que se dirige ao Hospital de Faro, onde fez a operação, e onde julga que vai ser assistida. No Hospital de Faro, a cadeia funciona, é-lhe atribuído o estatuto de doente prioritário, todo o sistema responde, radiografias, análises, verificação das fracturas. Mas subsiste um problema no final da cadeia. Não há um médico ortopedista disponível. Pensa-se que haverá no Hospital de Portimão. Também não. Pensa-se no Hospital de Beja. Também não. Só há uma solução – Ou o Hospital de São José, ou o Hospital de Santa Maria. Trezentos quilómetros de ambulância, a equipa normal nestas soluções. A escala determina São José. Também aí a equipa funciona. Também aí o caso é tratado com a rapidez possível. Mas passou um dia inteiro, e passou uma parte da noite, vários funcionários envolvidos, o sofrimento do paciente, tudo o que se imagina, e existe a despesa. Dizem-nos que devemos imaginar como razão para tudo isso, as contas orçamentais.

Pois, por certo, que o facto de não haver um ortopedista disponível a Sul do Tejo resulta do jogo orçamento. É natural que se diga que a concentração em Lisboa resulta mais leve para o erário público. Diz-se, sim, mas não se acredita. Essas contas têm de ser explicadas. As razões pelas quais faltam médicos em especialidades tão importantes quanto são a ortopedia, surgem desgarradas. Algumas delas roçam o ridículo, como é o caso de os médicos não quererem preencher as vagas no Algarve porque não há incentivos de ordem cultural na região. É verdade que a região tem um défice de atractivos na área da Cultura. O que lhe sobeja em lazer, falta-lhe em oferta cultural. Um médico que esteja habituado a ir ao teatro, à ópera e aos grandes concertos de música clássica, aqui, terá de ir a Sevilha ou a Lisboa. 

Mas aí, também se terá de fazer as contas. Se é uma questão de orçamento, também se terá de perguntar o que sairá mais barato. Se fazer os doentes, em péssimo estado, andarem a percorrer estradas de ambulância, se recompensar médicos competentes de modo a que possam fazer os mesmos percursos para não se sentirem isolados. Tudo isto, enquanto a região não encontra a sua dimensão própria, e o Algarve não se transforma da estância de lazer e passatempo que é, numa região com identidade cultural na modernidade, que ainda não é.

Mas falei de uma desculpa ridícula. Sim, nem todos os médicos serão Albert Schweitzer, o médico pianista que foi para o Gabão e criou o Hospital em Lambaréné.  Se ele tinha necessidades culturais? Sim. Vivia no meio do mato, e vinha à Europa para dar concertos, ganhar dinheiro, e regressar para investir no meio do mato. Nem todos nascemos Schweitzer, claro. Mas também alguma coisa estará errada quando a doença e o sofrimento não entram nas nossas vidas a não ser por via das administrações públicas e das compensações orçamentais. A pessoa que mencionei lá está em casa, imobilizada. Mas o argumento da cultura perde-se-me no traçado da A2 e não sei porquê.

Carlos Albino
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Flagrante previsão: Ou vem aí terramoto, ou para pior já basta assim.

quinta-feira, 24 de março de 2016

SMS 659. Nuno Guerreiro, grande Voz

24 março 2016

Justifica-se um parêntese na prosa que a gente julga ser sempre a bem da pátria e em que tantas vezes nos enganamos. Claro que haveria muito para dizer nesta modorra de semana semana, mas há melhor para dizer. Um parêntese muito melhor.

Quem é Nuno Guerreiro? A pergunta pode parecer insólita para aqueles que conhecem este cantor desde que surgiu na cena pública portuguesa, e nunca mais se esqueceram da sua voz de timbre único, e da sua presença, ao mesmo tempo frágil e forte, terna e audaz, como se tivesse entrado nos palcos, de um mundo desconhecido. Temas que o lançaram, permitiram que fossem trauteados por muitos dos que lhe são fanáticos. Mas, passados vinte anos, ainda há quem pergunte - Quem é Nuno Guerreiro?

Quem esteve no passado fim-de-semana no Cine-Teatro Louletano, e assistiu pela primeira a um concerto dos A Ala dos Namorados, e não conhecia, sabe que Nuno Guerreiro é uma figura singular. Quem apenas voltou a ver actuar o cantor, sabe que estes anos lhe deram ganho, acrescentaram talento e capacidade de chamar a atenção de grandes plateias, apesar  do tom intimista que empresta ao que canta. Quem esteve lá, ao longo desses dois concertos, ficou a saber que Nuno Guerreiro é um dos sérios, talentosos e singulares cantores da música que actua neste momento em Portugal.

Mas no final, quando Nuno Guerreiro vem ao foyer assinar papelinhos para os jovens fãs, a questão que se põe é esta - O que está a acontecer com a divulgação da música ligeira em Portugal? Que espectáculos são estes que a televisão passa, e que figuras menores são essas que promove? Que flutuação é esta que nos está a acontecer, que é possível substituir as grandes figuras da música, como é o caso de Nuno Guerreiro, acompanhado por uma grande banda, e por grandes letristas, João Monge ou José Fialho Gouveia, por roqueiros de última classe, alguns deles mal distinguindo música e guinchos?...

Felizmente que Nuno Guerreiro regressou por dois espectáculos à terra que o viu nascer. Que a sua mãe e seus amigos estavam presentes, que a festa na sala foi de uma grandeza sem medida. E felizmente que não é necessário que Nuno Guerreiro regresse às origens para ser reconhecido como um cantor singular em todos os sentidos. Mas é bom que de vez em quando venha até à sua "prima patria", para ter a certeza de que a flutuação trazida pela comunicação grotesca que tudo ataca e tudo baixa até ao nível do zero, não atinge os que o amam e lhe dão coragem.

Uma grande Voz da música e grande parêntese da excelência que justifica que a sociedade seja Sociedade com o melhor perfume da arte, da sensibilidade e do bem. Obrigado Nuno Guerreiro.

Carlos Albino
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Flagrante irreflexão: Parece paradoxo mas não é – o pior dos abstencionismos é entre eleições ou fora do calendário das eleições, porque não é o poder que estraga os homens, mas, sim, estes é que estragam o poder. E a coisa começa cá por baixo, localmente. Ou seja: há o poder local e há os paradoxos locais.

quinta-feira, 17 de março de 2016

SMS 658. Marcelo e o Algarve

17 março 2016

À parte um ou outro ritual partidário sem maior significado que não fosse dar solenidade à jantarada ou atrair gente ao pavilhão ficando por regra a cismar em palavras sibilinas, o Algarve, pelo país a fora, relacionava-se com Marcelo Rebelo de Sousa por via das chamadas “revistas sociais”. Era o mergulho, era o bronze, era a areia colada ao corpo, era a entrada ou a saída do mar, e a “notícia” da algarviazação do ilustre forasteiro ficava por aí. Mas há um episódio que não entrou nos devaneios da socialite, nem fez parte de ritual de voto, que dá conta de que o agora Presidente da República é solícito para além da política, é sensível para além dos trunfos de aproveitamento e tem humor que por vezes, como é o caso, coincide com a espontaneidade.

Foi assim. No dia 9 de julho de 2014, promoveu-se na Ermida da Senhora da Conceição, em Loulé, uma “maratona de poesia”, dedicada a Sophia de Mello Breyner, entre as 21:00 e as 24:00, a propósito da sua entrada para o Panteão Nacional. Largas dezenas de intervenientes, presencialmente ou por telefone, fopram lendo poemas para gente que, sem desarredar pé, enchia a ermida e o largo fronteiro. Marcelo foi dos poucos que, sem grandes explicações para o que se pretendia, não hesitou em aceitar o convite para ler por telefone um poema. Ficou marcada a sua entrada na “maratona” para as 23:48, cabendo-lhe o seguinte breve poema:

Porque será que não há ninguém no mundo
Só encontrei distância e mar
Sempre sem corpo os nomes ao soar
E todos a contarem o futuro
Como se fôsse o único presente
Olhos criavam outras as imagens
Quebrando em dois o amor insuficiente
Eu nunca pedi nada porque era
Completa a minha esperança

Marcelo leu e bem, sobretudo os dois versos finais: “Eu nunca pedi nada porque era
Completa a minha esperança”.

Mas, bem se pode perguntar, onde está o humor neste episódio? É que, a essa hora e mesmo minuto 48, decorria, em São Paulo, um crucial jogo do Campeonato do Mundo, entre a Holanda e a Argentina, que inesperadamente resultou num empate esgotado o prolongamento. Ninguém na ermida ou fora dela “sofria” com o jogo concorrente dos poemas de Sophia. Chegado o minuto 48, a potente aparelhagem sonora foi conectada ao telefone de Marcelo, pelo que a colaboradora da maratona disse: “Professor! Pode começar a ler, está em direto…”

Mas quando toda a gente estava à espera do poema com a voz de Marcelo, ouviu-se tudo menos um poema, ecoando um “Oh menina! Agora não, estou nos penáltis…”  E foi gargalhada geral mal contida.

Foi já perto da meia-noite, que Marcelo começou por recitar - “Porque será que não há ninguém no mundo…”

Hoje já ninguém ri, mas se Marcelo ler isto, será o último a rir e melhor, porque esse momento acabou por ser um poema de humor, que também há quando um político não tenha cara de pau. Obrigado Marcelo.

Carlos Albino
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Flagrante disparate: Alguém se afirmou “defensor da regionalização da descentralização”… Vai longe.

quinta-feira, 10 de março de 2016

SMS 657. O relógio do Algarve precisa de corda

10 março 2016

No encantatório número 100 dos dias de Governo, o primeiro-ministro António Costa atribuiu à zona da raia ou da fronteira com Espanha, o pesado título de “frente peninsular”, o que considerou como fundamental para a economia portuguesa. E associou essa chamada de atenção, a um necessário esforço de descentralização que não hesitou em definir como "a pedra angular da reforma do Estado”, o que se ouve há anos e anos, mas sem se sair do mesmo lugar como nas bicicletas estacionárias – pedala-se muito, mas a paisagem é sempre a mesma e suor do ciclista é proporcional à mordomia.

Além da frente peninsular que, no imaginário político, anda colada à difusa noção de “interior” do País, António Costa referiu-se também ao mar português como domínio a não perder de vista, mar que, na verdade, a Espanha também perscruta de binóculos, indiferente à raia portuguesa que não facilita caminho para o oceano. E com tudo isso, no escolhido lugar de Idanha-a-Nova, o primeiro-ministro quis dar relevo à Missão para a Valorização do Interior.

E o Algarve, que conta para isso, sendo simultaneamente raia, interior e mar? A Unidade para a Valorização do Interior dispõe do mapa do interior e da raia algarvia? É claro que para os que reduzem o Algarve à estreita faixa de oito quilómetros a começar do ponto em que a água do mar fica à altura dos calções de banho, não há interior nem raia. Para esses, a linha de bordejo com a Andaluzia que já deveria ser estratégica e o curto horizonte com Marrocos que já deveria ter produzido relação madura, são coisas que não existem ou se existem é apenas para alimentar anedotário. Mas, convenhamos, não têm culpa nem responsabilidade. Nem se pode dizer que Faro e Sevilha não são dois pólos peninsulares de semelhante para semelhante, ou que Faro e Rabat são dois ilustres desconhecidos sem pontes institucionais, apenas porque não há descentralização, para não se falar de regionalização, palavra que entrou no dicionário das coisas de que se têm vergonha a partir do momento em que se retirou da Constituição a hipótese de região-piloto. Nem se espere para o Algarve grande coisa da Unidade de Missão, que tem mais interior com que se entreter.

O Algarve tem que contar consigo próprio, pelo que não se pode nem se deve omitir que independentemente da descentralização prometida, é ao Algarve que compete fazer o trabalho de casa, com especial responsabilidade para as poucas instituições de que dispõe com voz própria e naturalmente para os seus titulares que não andem por aí com poderes difusos como que no rabisco da alfarroba. Há muito trabalho de casa a fazer sem que se esteja à espera dos bons humores do poder central, e, para já o relógio do Algarve precisa de corda. O seu ponteiro dos minutos está parado, a hora é a anos e anos sempre a mesma, o pêndulo está vertical parecendo que quem o deveria balancear, está em calções de banho a olhar para as ondas.

Carlos Albino
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Flagrante reparo: Bastantes leitores, diretamente ou por e-mail, nas habituais pré-leituras disponibilizadas ou depois de letras impressas, coincidiram quanto ao “hermetismo” do apontamento da semana passada. Na verdade, foi de propósito que instituições e nomes de titulares não foram referidos. Interessa-nos mais a reflexão e muito pouco julgamentos ou criar réus, coisa que fica muito bem entregue a juízes estagiários.  Muito gostaríamos que houvesse no Algarve uma Avenida Larga da Crítica, do tamanho da 125 e sem acidentes.

quinta-feira, 3 de março de 2016

SMS 656. Conversa de surdos e mudos

3 março 2016

Não as instituições que não têm boca e orelhas próprias, mas os indivíduos que estão à frente das instituições, são no Algarve useiros e vezeiros em ouvir de orelhas moucas e falar de lábios fechados. É o que, como se costuma dizer, conversa de surdos e mudos. Nos patamares do civismo e da política, os resultados desta pose que tem por pai o oportunismo e como mãe a manha, não são visíveis à vista desarmada mas produzem consequências nefastas a prazo por vezes curto, quando a mudez cívica e a surdez política dos indivíduos compromete as instituições, sejam estas quais forem, da que está na base das bases da pirâmide à que nos contempla a todos lá no pino das alturas.  Pergunta-se e não respondem. Responde-se, e fingem não ouvir. Estranha-se a surdez mantida majestaticamente a coberto das instituições, ou desconfia-se de que a mudez decorra de um poder que deu em patologia, e, quando muito sentir-se-á longinquamente uma resposta soletrada na proporção da necessidade de auto-defesa espúria, ou então, mais proximamente, uma voz de carroceiro, adequada à pressão, à chantagem e mesmo à ameaça fátua. Entre um recurso e outro, não é raro o uso da intermediação do que se costuma designar por “voz do dono”.

Esta gente alojou-se na Democracia como poderia ter-se alojado numa ditadura, porque é da sua natureza alojar-se, porque o entendimento que faz da inteligência é saber alojar-se, e a conceção que tem dos poderes públicos é a de que tais poderes são como que coisa da sua propriedade privada. Daí que tais surdos e mudos se incomodem com a crítica fundamentada, com o escrutínio desinteressado e sobretudo com o facto de haver felizmente no mundo gente com olhos e ouvidos.

É verdade que só agrada a todos aquele que não tem olhos, não tem ouvidos, não tem boca, não tem cheiro e não tem tacto. Não tem nada. Mas é maior verdade que é muito mau sinal que algum ser humano consiga viver e conviver como aquele peixe que sobrevive a cinco mil metros de profundidade, nas mais profundas fossas marítimas: sem olhos, sem pavilhão auditivo, sem língua, sem narinas e sem sensibilidade cutânea. Peixes destes nem para caldeirada servem. Estragam as instituições e fazem destas uma caldeirada que até pode repugnar.

Carlos Albino

Para bom entendedor… meia conversa basta.
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Flagrante verificação: Há muitas, muitas associações sem qualquer associativismo, mas algum, ainda algum associativismo sem qualquer associação. A subsídio-dependência explica.