quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

SMS 647. O El Dorado das corporações

31 dezembro 2015

Não são todos assim. Há médicos que são beneméritos. São conhecidos e reconhecidos. Há advogados que advogam, há arquitetos que não vacilam na fronteira do interesse público, há engenheiros em cujos cálculos entra com rigor a argamassa da responsabilidade social. Mas os advogados que não advogam, poucos ou mesmo ninguém dá por eles; os engenheiros que, aldrabando a argamassa, saltitam entre interesses e interessados, diluem-se nos meandros da responsabilidade política que os sustenta no anonimato confortável; e há arquitetos cuja irresponsabilidade é como fazer um traço sobre o joelho. Todos estes não são casos de vida ou de morte, o que já não acontece com os médicos. Pelas mãos destes passa muito destino. E quem fala de médicos fala da saúde, e falando-se desta, à cabeça fala-se dos serviços públicos de saúde. E nesta matéria, o Algarve há muito que tem o problema por resolver. Melhor dizendo: por explicar. Ao longo de anos e anos, o Algarve tem sido palco de cenas inacreditáveis. Algumas destas cenas decorreram de simples e pura incúria. Outras por insuficiência ou falta de pequenos hospitais, de centros de saúde ou até mesmo pela falta do tal hospital central. Outras cenas por escassez de enfermeiros, outras pela falta de médicos. De vez em quando, e quando aparentemente e dito pelos próprios, há médicos e enfermeiros, as culpas vão para as administrações públicas de saúde, ou mesmo para esta ou a anterior administração hospitalar. E é assim que desde que há um serviço nacional de saúde, há também um problema dos serviços públicos por explicar e que não há meio de ser ou de ficar explicado e resolvido, não se desconhecendo que a atividade comercial da saúde (a grande e a pequena) viu nessa falta de explicação um “nicho de mercado” crescente e grandemente lucrativo.

E é aqui que o pequeno grande mundo dos médicos se divide: há aqueles para quem trabalhar no Algarve é como ir para Marrocos, como alguém responsável recentemente testemunhou, e há os médicos para quem trabalhar no Algarve é o mesmo que ir para o El Dorado, como naquela antiga lenda dos incas que dava conta de uma cidade toda ela feita de ouro maciço e tanto ouro puro havia que o imperador tinha o hábito de se espojar no ouro em pó, para ficar com a pele dourada…

Na verdade, há gente da saúde que chega ao Algarve em camisa sobre a pele e osso e com o carro a cair de podre, mas que passado pouco tempo parece que se espoja em ouro. Explica-se: a mesma intervenção que por aqui se cobra dois mil euros, na Alemanha custa duzentos euros, como aqui nestes apontamentos já se descreveu. Quando isto acontece, a última coisa que se pode exigir a um médico é que, em vez de se espojar em ouro, seja escuteiro ou carmelita descalço, mas também a primeira conclusão a que se chega é a do fracasso do serviço  público de saúde, fracasso agravado quando atos e omissões dos responsáveis se encaixam com o “nicho de mercado” do tal serviço comercial de saúde. Entretanto, bastantes morrem cedo demais.

Dá para continuar.

Carlos Albino
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Flagrante advertência: Mal do Algarve se uma nomenclatura é apenas substituída por outra. Parece que este 2016 é o ano do retorno de autores de muitos disparates do passado.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

SMS 646. Natal de Lutgarda Guimarães de Caires

24 dezembro 2015

Não estranhem. Embora toda a gente tenha uma ideia, muitos saibam mas poucos se recordem, ocorre-nos evocar Lutgarda Guimarães de Caires, mais pela sua marcante figura de humanista e filantropa do que pela sua poesia que teve a sua época e moda. Lutgarda é filha de Vila Real de Santo António, homenagens oficiais e iniciativas tendentes a colocá-la na memória dos vivos, embora não muitas, não têm faltado. Em 2007, a sua obra poética foi reeditada; em 2005, foi erigida uma estátua de corpo inteiro, da autoria do escultor também vila-realense Nuno Rufino; antes, em 1966, um busto seu foi apresentado na margem do Guadiana que depois voou para sítio esconso; mais longinquamente, em 1937 (dois anos após a sua morte) o nome de Lutgarda foi dado a espaço público na sua terra natal; e, quando o corpo ainda estava quente, o Governo português agraciou-a com a Ordem de Benemerência e a Ordem Santiago da Espada, a primeira pela dedicação de Lutgarda às crianças. Com tudo isto, ficou para toda a gente a ideia da poetisa, embora muito saibam que Lutgarda foi mais do que isso, e poucos se recordem da humanista e da filantropa, o principal da sua vida.
            
Vem a propósito. Lutgarda foi a fundadora e impulsionadora do Natal das Crianças dos Hospitais, que, como toda a gente sabe, hoje se chama apenas Natal dos Hospitais, alargado que foi a todas as idades, uma festa que ano após anos atingiu uma dimensão jamais esperada. Popularizada pela rádio e depois pela televisão, a festa hoje perdeu de vista o nome da criadora da iniciativa, mas o sonho, a vontade e a obra pertencem a Lutgarda.

Mas a filantropia e o humanismo de Lutgarda não se restringiu à sua atenção pelas crianças doentes. Convidada em 1911, pelo então ministro da Justiça Diogo Leote para um estudo sobre a situação dos presos, principalmente das mulheres, Lutgarda conseguiu a abolição da máscara penitenciária e do regime de silêncio, instrumentos que colocavam as prisões portuguesas nos tempos medievais. O regime de silêncio, aliás, era um castigo tipicamente medieval que, no seguimento dos nossos brandos costumes e das conveniências da justiça politizada, vigoraria até 25 de Abril de 1974…

Neste Natal de 2015, aqui fazemos modesta homenagem a Lutgarda, pelo seu Natal das Crianças dos Hospitais. E como a 30 de março de 2016, passam 80 anos sobre o dia da morte de Lutgarda, cabe a Vila Real de Santo António homenagear quem tudo fez para que as prisões portuguesas saíssem da barbárie, sobretudo com a abolição da máscara penitenciária que fazia de seres humanos, alguns arbitrariamente condenados, bichos numerados na jaula, sem direito ao rosto e cujos nomes eram substituídos por números. Lutgarda, se fosses viva, oferecia-te neste Natal uma flor de esteva da serra algarvia, ainda que em botão, deve haver algum. Mereces.

Carlos Albino
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Flagrantes eventos: Neste Natal, aí pelo Algarve, alguns eventos que, sem tirar nem pôr, fazem do Natal o mesmo que Carnaval, Dia das Bruxas, Animação de Verão, Palhaçadas… Tudo igual, até o Pai Natal com ar de pateta no meio de ursos de Entrudo. Parece que o Presépio perdeu as eleições e que o menino Jesus, a Mãe e o Pai adotivo José nem sequer passaram à oposição – entraram na clandestinidade. “São os eventos!” – dirá o burro e até a vaca.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

SMS 645. Correspondência França-Portugal

17 dezembro 2015

De Paris, amigo meu, catedrático de referência, abre o diálogo que se segue:

- Como vão as coisas?
- Por aqui as coisas mudam, as loisas não… E por aí?
- Por aqui depois do suspense das eleições as coisas estão menos mal. Mas se analisamos porque é que tanta gente vota FN, dá uma "fotografia" pouco agradável de 30% dos Franceses.
- Também por aqui, há “fotografias” pouco agradáveis.
- Como diria a minha mãe, os Franceses no fundo tinham aderido em grande parte a Pétain, depois nos anos 50 ao horrível Poujade, essa espécie de ideologia pequeno-burguesa restrita, reacionária, mesquinha, mais o racismo que está enraizado numa parte da população...
- Por aqui, mudando Pétain e Poujade para outros nomes, passa-se o mesmo, só que atrás de um biombo, com 50% dos Portugueses atrás e outros 50% à frente. Como explicas isso aí
- A falta de pedagogia - desde a escola primária às altas  instâncias dos governantes - destas última décadas tem feito resto. A falta de grandes intelectuais que lutam pela liberdade da palavra e do pensamento e pelo humanismo. Agora são falsos intelectuais cuja maioria vem da direita e que são convidados pelos media. Quando os bons intelectuais, inteligentes, sensatos, que analisam com mais profundidade falam, o povo acha que são chatos. Mais um jornalismo francês que prefere criticar seja o que for.
- Por aqui, tal e qual. Sobretudo isso, a falta de pedagogia desde a escola primária às altas instâncias dos governantes. Dá para conversa longa.
- Falaremos disso quando nos voltarmos a ver. Bom, continuemos a “luta”. Como tu dirias, os políticos defendem a cidadania até chegarem ao poder. Parto dia 21, vou a Zürich à ópera ver "Il viaggi a Reims" do Rossini, que vi há trinta anos quando o Abbado re-descobriru a partitura e o Ronconi  encenou na Scala com uma distribuição maravilhosa. Veremos desta vez. Depois vou para o Lago dos Quatro Cantões, como nestes últimos anos, ler, andar a pé ao longo do lago e nas montanhas à volta, ir de barco de vez em quando a Lucerna, talvez escrever - porque não? - em todo o caso, mudar de  ares e ver o lago e os barcos que o atravessam.
- Que sorte! Aqui temos que nos contentar com alguma coisa que pingue na província, depois passear rente ao mar e imaginar um caíque vindo do horizonte. Imaginar apenas, porque já não há um único caíque nem para amostra, e que se os suíços descobrem ainda põem um a navegar no Lago dos Quatro Cantões...

Carlos Albino
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Flagrantes votos: Bom Natal para todos os que tolerantemente lêem estes apontamentos e, muito em especial, para os fazem este Jornal do Algarve, o nosso The Times, como diria José Barão e João Manjua Leal não se cansa de repetir.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

SMS 644. Leão Penedo

Leão Penedo 1916-1976
10 dezembro 2015

Em 2016 é o centenário do nascimento de Leão Penedo (13 de agosto de 1916, em Faro). Para além dos poucos moradores da rua que tem o seu nome, nas costas do Hospital Distrital, Leão Penedo pouco ou nada diz para a generalidade das pessoas. Aliás, o Algarve quase só se lembra dos seus para nomes de ruas e mesmo para isso é preciso terem morrido há muito, porque os mortos recentes ainda fazem sombra aos vivos à espera de ruas. Pior ainda, dá-se nomes porque tem que se dar nomes às ruas para não se cair na vergonha de dar a uma rua o nome de Rua do Continente e a outra o de Rua do Pingo Doce, pelo que os nomes que se dão obedecem a uma escala que começa na celebridade possível, havendo poucas celebridades, e acaba na nulidade, das muitas que são a fartura. Não é o caso de Leão Penedo de que Faro se devia lembrar, e nessa lembrança, não tanto para encómios póstumos mas para pretexto de reflexão diversa e recapitulação do obra, da literatura ao cinema que foram as principais ruas de Leão Penedo.

Na verdade, Leão Penedo foi um dos mais destacados escritores da corrente neo-realista portuguesa e um dos fundadores da Sociedade Portuguesa de Escritores. Desligado da atividade literária em 1961 na sequência de um derrame cerebral, faleceu em janeiro de 1976, deixando obra escassa mas notável - Multidão (1942), Caminhada (1944), Circo (1946), A Raiz e o Vento (1954). Do seu romance Circo, fez a adaptação para o já clássico filme Saltimbancos (1951), de Manuel Guimarães, vindo depois a colaborar com Rogério de Freitas no argumento de Sonhar É Fácil, e ainda a assinar o argumento e diálogos do filme Dom Roberto, de José Ernesto de Sousa.

A sua atração pelo jornalismo, cedo se fez notar: aos 13 anos, sendo aluno do Liceu de Faro, publicou um jornal de quatro páginas de que saiu apenas um número… Depois, por aí inundou os semanários regionais com textos seus, e, chegado a Lisboa, aos 19 anos, fundou uma revista de estudantes, Mocidade Académica. Andou por redações de referência na época, designadamente a Vida Mundial, mas a literatura e o cinema foram as as suas ruas.

Faro, se fosse ainda Ossónoba recordar-se-ia de Leão Penedo em 2016. Penso que bastaria chamar pela Univerdade e esta acorreria.

Carlos Albino
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Flagrantes gastos: Muito do que por aí se gasta em autarquias, a pretexto de “cultura” mas que não passa de “cóltura”, são gastos perdulários e sem resultados dignos. Muito dinheiro perdido – sabe-se de onde vem, desconhece-se para onde vai.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

SMS 643. Esta pode ser uma boa hora para o Algarve

3 dezembro 2015

O Algarve nunca resolveu o problema da sua identidade – foi por séculos reino sem rei, foi governo civil com pouco governo e um simulacro de civil, acabando por viver sob comissões regionais disto e daquilo mas que não têm passado de consulados do centralismo e de mordomias traçadas pelo compadrio partidário dominante, e assistindo também à organização municipal, ora assim ora assado, mas sempre verbo de encher. Ou seja, o Algarve tem muito presidente mas não tem voz, não tem figura com capacidade de decisão assente na formação de vontade democrática, representativa e filtradora da competência. Há muita cabeça a suscitar mesuras, mas não tem cabeça que assuma com legitimidade representar a região, agir em nome dela e submeter-se ao escrutínio responsável. Nestas circunstâncias, quando as coisas correm mal, a invocação das “ordens superiores” obviamente que é o expediente para salvar os carapaus de corrida, e quando correm bem os benefícios não vão para o currículo da região mas para os currículos pessoais dos cônsules. Assim sendo, a região tem uma inequívoca identidade geográfica, mas uma já relativa identidade cultural, uns restos de identidade política e nenhuma identidade volitiva.

Segundo parece, o programa deste XXI Governo pode anunciar uma boa hora para o Algarve que, como Algarve, mais uns poucos anos e seria uma espécie em vias de extinção.

E porquê boa hora? Para já, com este prometido novo modelo territorial coerente assente na  região de planeamento e de desenvolvimento territorial, na criação da autarquia metropolitana, na promoção da cooperação intermunicipal através da comunidade intermunicipal (no Algarve, única por instinto de defesa), na descentralização para os municípios das competências de gestão dos serviços públicos de caráter universal e na afirmação do papel das freguesias como pólos da democracia de proximidade e da igualdade no acesso aos serviços públicos. É o que está escrito.

Implicando isto a democratização da CCDR, com a eleição do respetivo órgão executivo por um colégio eleitoral formado pelos membros das câmaras e das assembleias municipais (incluindo os presidentes de junta de freguesia) da área de intervenção, e passando o órgão executivo da CCDR a responder perante o Conselho Regional, o Algarve não terá o rei que nunca teve, nem o governo civil que nunca passou de pau mandado, mas terá cabeça – com toda a legitimidade democrática, o Presidente do Algarve -, terá tronco com dignidade muito acima dos quintais autárquicos – o Conselho Regional -, e terá pernas para andar e mãos para mexer, assim o colégio eleitoral tenha pernas e mãos.

Só que, ao estado a que o Algarve chegou, não basta o decreto ou os decretos. É necessária uma reforma das mentalidades. E este é o problema, o desafio e a urgência. Caso queiramos aproveitar uma boa hora.

Carlos Albino
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Flagrante nomeação: Não tenho a certeza, vou verificar. Alguém me garante que Teresa Caeiro, eleita pelo Algarve, disse aos dirigentes do CDS/Algarve: “Desculpem lá o ambiente que eu vim causar. Também não tive culpa de ser nomeada pelo Paulo Portas para a lista de Faro”… Estas reticências aplicam-se. Nomeações assim ficam mal em qualquer que seja o partido.