quinta-feira, 27 de novembro de 2014

SMS 591. Sócrates


27 novembro 2014

Terminou o que já parecia um auto de fé. Independentemente da acusação que supostamente será deduzida, a carreira política de Sócrates terminou.

Ninguém, à direita ou à esquerda pode vangloriar-se com o destino que José Sócrates foi traçando até este desfecho que em primeiro lugar afeta todos os que acreditaram nele, especialmente a roda da sua proximidade e, nela, os que usufruíram, à confiança, algum benefício político legítimo.

Mas também ninguém, à direita ou à esquerda, pode ou deve vangloriar-se.

Por um triz, outras figuras não caíram, outras caíram mesmo e pertencem a comboios diferentes daquele que Sócrates tomou. A prisão de Sócrates não permite, só pela prisão, vivas à Democracia, como se a saúde desta dependesse da prisão de um homem que já foi poderoso, mas, agora, está reduzido à dimensão de quem tem que explicar porque não cumpriu deveres e obrigações.

Na verdade, é triste que, para esse homem, agora tenhamos que lhe destinar aquele sentimento da Grécia Antiga e que tem o nome de piedade. Não está condenado, poderia ter fugido como muitos podem fugir neste mundo e fugiram, mas a sua carreira terminou.

É certo que, no território da probidade e da seriedade, deixa muita gente atónita, e permite que, no território do engano, muita gente também ande por aí ululante mas com pernas de fora ou tapando muita perna.

A ver vamos.

Esta é uma lição da qual todos, sem exceção, eleitos e eleitores, devem extrair conclusões. Aquele que foi eleito e sobre o qual possam recair dúvidas baseadas em factos, documentos e procedimentos, prejudicando gravemente a respetiva idoneidade moral, têm o dever de, atempadamente, se demitir ou de se auto-suspender, não entrando no jogo da presunção de inocência ou da invocação de que “nunca fui condenado”, sabendo-se como a lei, sempre imperfeita e lacunar, pode ser contornada e ladeada. Desde o Presidente da República, Primeiros-Ministros e Deputados cuja consciência tem um espelho como qualquer cidadão mas cujos exercícios decorrem perante uma massa de anónimos desconhecidos, até ao Presidente de Câmara do qual todos são vizinhos e conhecidos, têm essa obrigação de não entregar a sua idoneidade aos tribunais. A idoneidade moral não é assunto de tribunal, de sentença ou de acórdão – é assunto de consciência. E os que elegem têm o dever de, pelos menos, não se enganarem duas vezes seguidas. A ver vamos.

Carlos Albino
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Flagrante alerta: Houve alguém que, um dia, perante a campanha anti-partidos, saiu-se com este: “Os partidos são melhores que os seus líderes”.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

SMS 590. Patrimónios

Magnífica obra de betão junto da Muralha remanescente da Torre da Corredoura
do Castelo de Loulé (Monumento Nacional)
20 novembro 2014

Não é agora que vou diretamente a um exemplo concreto que me força a adaptar o tal verso do Fernando Pessoa para o que não é verso mas controverso: “A autarquia faz ronha, o homem requer, o monstro nasce”. Isto, a propósito de património, designadamente património classificado de monumento nacional ou de interesse público. E não é agora, porque ainda espero que a autarquia e a tutela tenham o bom senso e o bom gosto de tratar da ferida. Da ferida, não; do monstro.

Patrimónios em geral, por ora, e do edificado. Como se sabe, o Algarve não é possuidor do chamado património gigantesco, esmagador aos olhos, a tocar nas nuvens. É quase tudo rasteiro, discreto, mas muita pérola. Ou seja, o património algarvio é como a gente olhar para um ser humano de corpo normal, de beleza absolutamente normal e que passa desapercebido, só que com um anelinho nada normal no dedo e é esse anelinho que luz como património. Há muito e bom anelinho por aí, dos tempos mais antigos da ocupação humana do território aos tempos mais recentes. E estamos tão habituados aos anelinhos que quase sempre não damos por eles, desvalorizamo-los, achamos até estranho que alguém fale do seu valor. Os que vêm de fora, sim.

Passam anos e anos, e projetos de valorização dos nossos anéis, não passam de boas intenções. Deixamos até, com a maior das indiferenças, que sejam vandalizados e roubados. O que é feito não passa de caidela e por vezes o que é feito é mal feito. E o que é bem feito, que também há bastante, passado o período de propaganda que normalmente não incide no património mas na figura promotora que da propaganda parece que precisa mais que o próprio património, isso volta a cair no esquecimento. O somatório deste património enterrado ou mesmo cremado e posto à margem, dá assim a ideia de que o Algarve “não tem nada” ou mais nada a não ser praias por dois meses, sol na faixa costeira e uns copos nas lojas dos indígenas, já que muita gente entra e sai do Algarve julgando que o Barrocal e a Serra são áreas de noites eternas que não dão para ver nada, além de que até as próprias cidades costeiras têm o seu património fechado ou a funcionar “nas horas de expediente” do funcionalismo público…

Não admira assim que o autarca anterior ao autarca atual tenha feito ronha, que o homem beneficie do requerimento despachado de ânimo leve e que o monstro nasça. Mesmo que nasça encostado a monumentos nacionais, a património de interesse público e zonas remanescentes protegidas ou que deveriam estar protegidas, até porque, lá longe, gente fechada em gabinetes que só vê a coisa por mapas e fotografias decide ou homologa de tal forma que em matéria patrimonial, no Algarve, vão-se os anéis e ficam os dedos.

E depois ficamos a olhar uns para os outros, ninguém tendo culpa nisto, uns por absoluta impreparação e falta de preparação para os cargos que ocupam, outros por falta da competência legal que deveriam ter, por falta de autoridade para intervir e porque estão reduzidos a meros “correios” para os gabinetes de Lisboa onde o Algarve não conta, ou conta cada vez menos de há uns anos a esta parte. Por isto mesmo, a gente erudita que há no Algarve e muita, sofre; gente culta que há no Algarve e muita, sofre. Sem sofrer ficam os que fazem ronha, requerem, e felizes estão com os monstros nascidos.

Carlos Albino
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Flagrante dieta mediterrânica: O populismo começa, por regra, por engolir-se um garfo. E acaba com o rei na barriga. Mas, independentemente do que, por esta dieta, é engolido, o curioso é que todos os candidatos são anti-populistas até chegarem ao poder.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

SMS 589. Gatos e ratos

Toda e qualquer coincidência com nomes conhecidos
 ou com a realidade, é simples semelhança”
8 janeiro 2014 

Por muito que haja, o debate local autárquico e também o debate regional, não ganham vigor e muito menos verdade, se tudo isso se resumir a uma luta de gatos e ratos. Os ratos nos seus esconderijos, resistindo com as possíveis provisões de queijo e toucinho, à espera de que o gato se afaste ou que, desalentado, vá à caça de outro roedor; o gato disfarçando-se em vegetariano, comendo cenoura, alface e até ovos de perdiz, para iludir o rato sobre o instinto carnívoro dos felinos.

Este jogo de disfarce até tem a sua piada quando gatos e ratos atuam no mesmo território, seja ele o de uma freguesia ou o de um mesmo concelho. Reuniões públicas de câmaras e de juntas, ou de assembleias municipais e de fregueses, naturalmente que propiciam divertidíssimos momentos em que os ratos exercitam com esperteza a paciência da clausura política (toda a clausura de rato é sempre política), e em que os gatos abdicam de um passarinho na ementa – quanto mais de um rato! – para provarem à sociedade que, por coerência com os resultados do último sufrágio, passaram a comer brócolos políticos (todo o bróculo na boca de um carnívoro é sempre político).  Todavia esse divertimento entre gatos e ratos, se é feito no mesmo território que os bichos partilham, até pode favorecer o escrutínio das ementas de cada um, ou seja, ajuda a esclarecer se gato come brócolos e se rato ainda tem queijo para se aguentar no esconderijo. Em cada concelho, em cada freguesia, poderíamos dar nomes aos gatos e ratos locais, mas ter-se-ia que usar a tal legenda dos filmes: “Toda e qualquer semelhança com nomes conhecidos ou com a realidade é simples coincidência”. Assim foi na Arca de Noé, onde este almirante bíblico conseguiu a proeza de evitar que os ratos fossem extintos pelos gatos e estes, por sua vez, extintos por abocanharem politicamente ratos envenenados (todo o veneno dado a rato é sempre político). Por aqui não há problema.

O problema é quando, sem que o gato saiba ou disso se aperceba, o rato escolhe outro território, outro concelho, outra freguesia com a proteção dos gatos locais, para espreitar a ocasião da extinção do gato no território onde campeou. E igualmente problema será quando o gato, alterando de igual forma as regras do confronto, vai à caça dos ratos do concelho a que não pertence ou da freguesia onde não é freguês, fazendo a caça de forma perversa: comendo brócolos, ou cenouras como coelhinhos da banda desenhada. A esta troca de terrenos sempre se chamou emigração política de conveniência, mas também sempre com maus resultados. Ou seja: entre gatos e ratos apenas muda uma letra. E essa letra mutante é politicamente suicidária.

Isto é uma fábula, e, tal como em todas as fábulas, “Toda e qualquer coincidência com nomes conhecidos ou com a realidade é simples semelhança”.

Carlos Albino
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Flagrante modalidade paraolímpica: Espionagem autárquica.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

SMS 588. O que caiu na rede social…



6 novembro 2014

Salta para o papel o que até agora tem jazido na rede social que não tem nem pode ter chão, e embora mais valha jazer numa rede social do que numa rede anti-social, dar chão às palavras como só o papel pode dar, é torná-las habitantes da nossa própria casa. Portanto, aqui ficam em papel:

Se o Facebook é um mural de emoções, de desabafos, de ordens para salvar o mundo ou de receitas para o afundar mais depressa, enfim, mural de tudo o que venha à cabeça ou fique atravessado no coração, não resisto a dar conta de pequena emoção.

Estava para entrar em casa, chave na fechadura, 23:02, ouvi música na proximidade, daquela música que apenas podia ser ao vivo e não ao morto. Retirei a chave, e a primeira emoção foi a de ir atrás do som. Atrás, ou atraído. Atravessei a rua, entrei por pequena travessa, oito passos e virei para pequena rua esconsa, um portão aberto, a música vinha dali. Espreitei, entrei, encostei-me à parede de fundo forrada de cortiça tal como as outras paredes, um salão térreo apinhado de músicos. A batuta do maestro verberava como asas de libelinha acima das cabeças de rapazes, homens velhos, mulheres de meia-idade e raparigas de perfil, um quadro que dava para retrato do Louvre, seriam uns 60 ou mais.

A música tocava, mas de repente deixei de a ouvir porque os olhos suplantaram os ouvidos como naqueles momentos em que as coisas nos parecem irreais ou quando muito inverosímeis como perante um fresco de Miguel Ângelo, em que o humano se torna divino e com o divino se confunde.

E estava eu convencido de que estava perante uma obra-prima da Renascença, quando o maestro, lá ao fundo, me cumprimenta com um sinal de batuta, como se eu fosse mais um músico. Se tivesse um instrumento, tocaria, tocaria qualquer coisa, nem que fosse um sopro que provocasse o som de um Obrigado. Mas foi nesse momento também que senti que estava a violar um espaço sagrado. Fiz uma vénia ao maestro, abandonei o local com uma emoção esmagadora, e até meter novamente a chave na fechadura, fui dizendo para mim: Obrigado, Artistas de Minerva, obrigado banda magnífica que Loulé tem, obrigado músicos de várias gerações e géneros, obrigado, vocês não são eleitos mas são de eleição, obrigado pérolas da noite.

Carlos Albino
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Flagrante evidência: Nenhuma terra se pode proclamar capital de qualquer coisa, se não capitalizar seja o que for. É óbvio.