quinta-feira, 26 de junho de 2014

SMS 570. O Algarve de que muitos gostariam

26 junho 2014

Lamento dizer, o Algarve onde tanta gente nasceu e que tanta gente assumiu como berço tardio não é o Algarve de que muitos gostariam. Muitos, mesmo. Uns que até nasceram na terra mas que no lugar do coração têm uma carteira, outros que por aqui estão e vão estando até ao fim como se estivessem em Zurique sob sigilo bancário, ou, o que dá na mesma, em Marraquexe como negociantes de camelos.

Estes, que são muitos, gostariam de que o Algarve não tivesse cidades, nem vilas, nem sequer aldeias – basta-lhes a sua casinha, com leõezinhos na portada ou um Cristo-Rei com icterícia comprado naquela feira do mau gosto da Guia para simular catolicidade. O Algarve, para esses, termina nos muros da casinha e a sociedade limita-se aos dois Labradores, três Rottweilers e um Basset Hound para entretenimento das criancinhas na sala. Nos empregos, públicos ou privados, procedem como os antigos colonos da Rodésia mas sem chibata, porque, nos tempos que correm, não é conveniente exibir a chibata, embora a tenham pendurada atrás da porta. Caso sejam técnicos, desde matérias de leis e de saúde a projetos ou mesmo ao arranque de dentes, gostam de ser tratados como especializados geralmente em tudo, fazendo tudo também não propriamente sobre o joelho mas sobre contrapartidas que entram no rol dos segredos de confissão. Dão-se bem, enriquecem e a casinha vai-se ampliando até à imitação de um palácio de Sintra, não faltando janelas manuelinas. Para estes, as eleições no Algarve estão a mais, as câmaras apenas se justificarão caso tenham sintonia com os interesses da casinha, o mar até é dispensável sendo coisa horrível em comparação com as piscinas de água quente e água fria, o património histórico e arqueológico do Algarve é coisa de doidos gastadores do erário público, e quanto a bibliotecas públicas apenas se toleram para a apresentação de algum livro de “poesia” da sua autoria, pois também fazem “poesia” nas horas vagas para mostrarem vigor intelectual às esposas, embora a “poesia” não passe de versos do género – Comi um figo inchário/ e o meu Rottweiler ladrou./ Será amigo que bate à porta?/ Será ladrão?/ Diz-me o meu Cristo-Rei/ que já não está quem aqui falou./

As televisões, todas, a pública e as privadas, não falam do Algarve pelo que até na abertura da época balnear omitem o Algarve programando reportagens exaustivas sobre uma praia de calhaus do Oeste ou sobre uma poça de água promovida a estância? Dizem esses que ainda bem, é assim que Portugal se mostra como República Unitária. A linha de caminho de ferro é uma desgraça? A saúde uma desgraça é? A segurança vive do milagre de até os assaltantes não terem dinheiro para a gasolina necessária ao ataque? O governo obriga os professores do Algarve a deslocarem-se a Évora para reuniões que só aos professores do Algarve interessam? Ainda bem, porque Évora precisa de movimento e o Algarve tem movimento a mais na minha casinha, com os meus Labradores, os meus Rottweilers e o meu Cristo-Rei da Guia para o senhor padre se convencer que sou daqueles que têm fé, esperança e caridade que é aquilo que torna perfeito um pseudoalgarvio em Zurique ou em Marraquexe.

Carlos Albino
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Flagrante conclusão: Há motivos para concordar com Cavaco Silva: os défices das câmaras de direita, por maiores que sejam, são superávits; os défices de câmaras de esquerda, mesmo que sejam insignificantes, são estrondosos rombos nos dinheiros públicos e exemplos da mais danosa gestão.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

SMS 569O trabalho de sapa

19 junho 2014

Nisso, o mar é professor. Sabe como levar a cabo essa ação, sempre pela calada, contra rochedo aparentemente fortificado. Mas essa engenharia própria do mar também existe em terra. Basta uma simples viagem por autarquias, câmaras ou juntas, para se constatar que o trabalho de sapa não é apenas metáfora, mas sim ação oculta e ardilosa do dia-a-dia, geralmente atribuída pelos lesados às “estruturas intermédias” e que serve para tudo, como ação oculta que é. Tais “estruturas intermédias” são o enorme bojo onde cabe de tudo um pouco. Aí cabem os leais e os desleais, os beneficiários de mordomias e os purgados de mordomias anteriores, os justiçados e os injustiçados, os sábios promotores da lassidão pública e os zelosos na aplicação das decisões, os manhosos no retardamento da execução de medidas urgentes e os cumpridores avessos ao favor de circunstância, os distraídos para quem o horário do serviço público é menor do que o horário dos interesses difusos e os atentos com rigor ao bem comum - a lista é longa. Nem todos os que parecem desfavoráveis aos poderes eleitos, legítimos e consolidados, serão sapadores, como também alguns dos que aparecem colados à eleição, à legitimidade e à solidez do poder não passam disso mesmo – sapadores, especialistas da trama e da ação oculta na expetativa de benefício a prazo.

O sapador que faz trabalho de sapa, por vezes e porque está no seu carácter, é o primeiro a dar a pancadinha nas costas, fazendo-o para dissimular a ação oculta, sendo assim coerente, mais coerente do que aqueles que não são sapadores. Consegue minar e até desminar, sem que alguém possa dizer ou provar que o seu trabalho é demolidor. O bom sapador nunca é crítico, nunca está contra, diz sempre que está a favor no que é circunstancial e esconde-se atrás do primeiro biombo que encontra quando instado a pronunciar-se sobre o que é essencial. É tão coerente consigo próprio a tal ponto que surge aos olhos do cidadão comum como o verdadeiro sufragado e eleito em detrimento do poder do qual depende, porque na ocultação que faz de si próprio tem a faca e queijo na mão.

Nas sociedades onde haja um razoável anonimato social, os sapadores têm nome e até fazem gala com seus nomes. Onde não há anonimato social, também ficam sem nome ou deixam perder o nome, porque, nestas circunstâncias, também rapidamente perderiam a coerência. A coerência do trabalho de sapa. E nisso o mar é professor. Designadamente o mar do Algarve.

Carlos Albino
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Flagrantes desabafos: Não se sabe bem lá porque motivo mas cada vez mais se ouve no Algarve desabafos sobre a vontade de ligar as antenas ou o sinal exclusivamente para a televisão da Andaluzia, já que a de Marrocos é idêntica às de Lisboa e Porto.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

SMS 568. Descaminhos de ferro

12 junho 2014

Recordo-me daquele tempo (2003) em que ouvi Durão Barroso, então primeiro-ministro, anunciar ao lado de Aznar na Figueira da Foz, uma linha de alta velocidade de Faro até Huelva. Logo lhe disse que não acreditava. E não acreditava por três razões: primeiro, pelos portugueses; segundo, pelos espanhóis; e, terceiro, porque a medida foi traçada com olho semi-fechado sobre o mapa. Vai ver, respondeu. E estamos a ver. Lá se conseguiu a eletrificação da linha até Faro, lá foram feitas umas obras mal planeadas numa ou noutra estação, e pouco mais. Qual linha dupla! Qual Huelva! Nada.  Segundo Barroso, o corredor Faro-Huelva seria planeado “em função dos resultados dos estudos a desenvolver”, por forma a que estivesse concluída antes de 2018 e, questionado sobre o financiamento necessário para colocar em prática o plano em período de contenção orçamental, o então primeiro-ministro assegurou existirem parcerias com a Refer, com empresas privadas e 20 por cento do Orçamento de Estado. Agora, o atual governo já não fala em Huelva, nem de 2018, mas promete, além da eletrificação total da linha do Algarve, uma ligação por comboio ao Aeroporto de Faro, segundo um plano de infraestruturas prioritárias a concretizar até 2022.

Temos todas as razões e motivos para não se acreditar nas profecias em matéria de comboios no Algarve e para o Algarve, até porque aquilo que está à frente dos olhos não são caminhos, mas sim descaminhos de ferro. As estações estão no colapso e sem sentido de serviço público, os comboios são sujos, porcos e maus, os serviços de ligações complementares para as localidades não existem nem os vinculados (ferroviários e rodoviários) querem que existam (invocam que são “concorrentes”…) e algumas obras feitas com razoável dispêndio (passadeiras aéreas, por exemplo) foram dinheiro deitado à rua. Estações sem funcionários ou com funcionários trazidos de longe por escassas horas; chegam pendulares e inter-cidades com as portas e serviços fechados, sem que ao menos haja a mínima indicação por onde os passageiros possam sair do cais de desembarque ou obter informações de orientação (então quanto a estrangeiros, presenciei estupefacção e atabalhoamento); as linhas numa imundície completa, com a CP a remeter responsabilidades para a Refer e esta para a CP, segundo me garantem funcionários impedidos de explicar mais. Isto não acontece no deserto, mas em zonas nevrálgicas, populosas e, já agora, de excelência turística, invocação de bom-tom que fica sempre bem fazer nas reivindicações normais.

Ora, a CP apresenta-se, desde de Junho de 2009, como uma entidade pública empresarial, detida a 100% pelo Estado Português, responsável pela prestação de serviços de transporte ferroviário nacional e internacional de passageiros, articulando-se a REFER  e com o IMTT - Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres (entidade responsável pela regulação e pela coordenação e planeamento).

E a REFER, criada em 1997, também embandeira como seu objeto principal, o serviço público de gestão da infraestrutura integrante da rede ferroviária nacional, dizendo desenvolver as suas atividades de acordo com princípios de modernização e eficácia, de modo a assegurar o regular e contínuo fornecimento do serviço público e proporcionando ao mercado uma infraestrutura de transporte competitiva e segura.

São responsáveis pela vergonha das linhas de comboios no Algarve não serem paralelas. Estão no descaminho. A Estação Loulé-Quarteira, é exemplo gritante dessa vergonha.

Carlos Albino
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Flagrante abraço: Foi feita uma homenagem a João Leal pelos seus anos de escrita. Por razões imperiosas não estive lá. Se lá tivesse estado, diria: “Aqui está um homem que raramente escreveu sobre si próprio, escreveu sempre sobre os outros, e, para ele, o Algarve não foi nem é um outro qualquer, é ele próprio entregando-se-lhe na escrita”. Tenho dito porque sou testemunha desse amor à terra.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

SMS 567. Gil Vicente esteve em Salir

5 junho 2014

Impossível de ser captada por máquinas de fotografar ou de filmar, mas não foi difícil verificar que a alma e o espírito de Gil Vicente esteve em Salir. E que, como todas as almas sem mãos para escrever mais autos e sem boca para os recitar em voz alta, Gil Vicente confiou nas mãos e nas bocas de anónimos para representar o Auto da Espiga, para mim inesperado.

Refiro-me, claro, à Festa da Espiga, portentoso teatro de rua, seguimento de farsas e de monólogos cortantes, enfim, ecos de tudo aquilo que Gil Vicente cultivou há séculos e que nunca me passara pela cabeça que estivesse na alma de Salir neste já adolescente século XXI. E tudo em verso. Versejadores e versejadoras, ali despejaram descrições de costumes, sátira, ironia e irreverências com o acordeonista João Carrusca a fazer alegre ligação às forças telúricas que irrompiam dos carros em desfile. Quem, neste mundo, busca personagens, ali estão ou com cabras trazidas pela mão, ou a propósito do vinho da Nave do Barão, das colmeias de Montes Novos, da padeira dos Toris, das lavadeiras do Almarginho, das mondadeiras das Barrosas, das mil verdades do Portel do Barranco bem provadas pelo medronho das Ameixiarinhas, da Califórnia e das Sarnadinha, da tiragem da cortiça do Barranco do Velho, da matança do porco da Cortelha, da empreita das Palmeiras – nomes e nomes que, por sí só, são poesia como aquele sol que nasce num verso a nascente e se põe no último verso a poente.

Estupefacto, assisti a tudo isto, encostado à casa de José Viegas Gregório que dá nome à biblioteca da terra e com quem mantive cumplicidade na guerra que travou para afirmar Salir, a sua terra, em tudo o que fosse canto onde coubesse uma palavra escrita ou dita. Ele não foi o inventor da Festa da Espiga mas foi ele que a fixou no espaço e no tempo, e a retirou da memória inorgânica certamente herdada de séculos. Não vem para o caso descrever essa cumplicidade, mas, palavra de honra, dei sempre o desconto ao entusiasmo e até à fé dele pelos autos da Espiga. Enganei-me e tive agora a prova. Não só por ali, em Salir, andou Gil Vicente cuja alma nunca se engana em andar pelo lugar da sátira e da ironia, como senti que também o espírito de José Viegas Gregório ali se vingou da minha descrença, ao me apresentar a heroína da festa, a D. Cremilde que há 47 anos é autora, actora e espectadora deste teatro cujo palco é uma rua do princípio ao fim, com Gil Vicente em cada cara. Gil Vicente que, como toda a gente sabe, era ourives e fez a Custódia de Belém em ouro fino. Nada me admira que Salir já esteja a fazer a sua custódia porque ouro e alma já tem. Falta apenas um pequeno sopro para que a sua Festa da Espiga, cheia de sátira, não seja mesmo um caso sério. Um pequeno sopro.
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Flagrante tema: Inacreditável o que acontece em estações ferroviárias do Algarve, sobretudo em áreas que são coração do turismo e da mobilidade dos algarvios. Partindo de um caso (Estação de Loulé-Quarteira), fica para a semana.
Carlos Albino