quinta-feira, 28 de outubro de 2004

SMS 77. Portanto, aí teremos… a Feira de Faro

28 Outubro 2004



Jerónimo Osório. Faro tinha a obrigação de, como capital nacional da cultura em 2005, ir buscar à profundeza do passado essa figura que foi das mais eminentes do Humanismo europeu, D. Jerónimo Osório, organizando tudo o que tinha para organizar com projecção internacional altamente assegurada. Aliás apenas se veria D. Jerónimo Osório como a figura de «marca» da capital da cultura. Já não há tempo para comprometer a rede de ensaistas e estudiosos no assunto.

Samuel Gacon. E teria a obrigação de, sem favor, reclamar a vanguarda da tipografia em Portugal, evocar Samuel Gacon que da sua oficina (1487) fez sair o mais antigo incunábulo português, o Pentateuco recolhido no British Museum de Londres. Faro já não tem tempo para programar um conjunto de acções adequadas: a vinda do livro para exposição de contexto, uma relação da ousadia de Gacon com a de Gutenberg e, nesse sentido, uma geminação activa e culturalmente estratégica com Estrasburgo, além da instituição de um Prémio Internacional de Tipografia – tipografia essa que não morreu, evoluiu. Faro não tem tempo e possivelmente nunca teve vontade.

Os 3000 livros de Oxford roubados a Faro. Teria a obrigação de organizar uma grande exposição sobre a Biblioteca do Bispado do Algarve, promovendo o retorno temporário dos 3.000 livros roubados pelo conde de Essex (1596) e que formam hoje um das cinco grande bibliotecas históricas do Reino Unido, a chamada Biblioteca Bodleiana de Oxford produto da pilhagem. Não tempo.

Tavares Belo. Teria a obrigação de promover a audição da obra musical do maestro Armando Tavares Belo. Além disso a estreia da ópera inédita com base na peça teatral Sabina Freire, de Teixeira Gomes, continua clamorosamente adiada ou esquecida – diz quem sabe que é uma magnífica... E nesse pretexto, instituir um concurso internacional de inéditos com o nome desse grande maestro e compositor. Exactamente: Tavares Belo. Não tem tempo.

Pintores. Teria obrigação de dar ancoragem internacional definitiva aos pintores da meridionalidade, muito para além das exposições. Não lhe faltariam os grande nomes da pintura - por exemplo a grande pintora farense contemporânea Luzia Lage (obra reproduzida ao lado). Não tem tempo.

Andaluzia e Marrocos. Teria a obrigação de reconstituir as rotas culturais e económicas com a Andaluzia e com Marrocos. Exactamente com uns ciclos Algarve/Andaluzia e Algarve/Marrocos. Não falo da vinda de uns ciganos de Sevilha e de umas folcloradas de Casablanca. Falo de coisa mais profunda. Mas não tem tempo.

Algarviana. Teria a obrigação de promover a recuperação da Algarviana de Mário Lyster Franco, a biblioteca desse bom e cultíssimo homem, estantes que eu conheci palmo a palmo quando era enorme mas que não sei onde está… Aliás, sei mas completamente desfalcada. Não tem tempo.

Universidades, escolas e grupos de pesquisa. Teria a obrigação de chamar à colaboração activa a malha universitária algarvia e das associações de pesquisa que em conjunto e trabalhando em conjunto surgiriam como motor espantoso e possivelmente surpreendente, nos domínios científico, tecnológico e cultural. Não tempo, obviamente.

Teatro com letra grande. Teria obrigação de pensar a sério no Teatro com letra grande. Não tempo para encomendar peças aos escritores algarvios ou sintonizados de projecção internacional e que são bastantes para não dizer suficientes. Não tem tempo para organizar um Festival Internacional de Teatro do Mediterrâneo-Atlântico.

Poetas capitais. Teria a obrigação de chamar à casa os grandes poetas de hoje e que são… capitais – Gastão Cruz, claro. Mas se Faro comprovadamente não quis dar tempo na sua agenda política ao plano de Casimiro de Brito que não passou de um primeiro Encontro Internacional de Poesia por atavismo dos políticos, também não é agora que terá tempo.

Ossónoba. Teria, Faro, a obrigação de promover um grande acontecimento sobre o nome que consta no seu verdadeiro bilhete de identidade e que é Ossónoba e com issoteria a obrigação de recuperar o bilhete de identidade do próprio Algarve que é remotamente fenício mas muito mais grego e romano que árabe. Não tem tempo.

Música e não cantigas. Faro teria a obrigação de pensar a sério na Música, também com letra grande. Aí sim, um Festival das Orquestras do Mediterrâneo, deixemo-nos de cantigas. E tem Álvaro Cassuto à mão! Poderia e deveria entregar a chave de ouro da cidade à Orquestra do Algarve. Não tem tempo.

Assis Esperança. Teria Faro, sobretudo, a obrigação de lembrar Assis Esperança e entrar pelo campo que a cultura tem de mais nobre – o romance. Fazer alguma coisa de fôlego nessa área nobre. Não me refiro a palestras, sessões de incensar e oportunismos do costume. Não tem tempo.

448 coisas mais. Alinhados estão apenas 13 mandamentos mínimos para que Faro não perdesse a ocasião de se agigantar culturalmente, mas é óbvio que a «capital da cultura» teria a obrigação de fazer outras 448 coisas mais sem que ficassem prejudicados os cantores amigos de Lena d’Água, os acordeões, os fados da Alexandra, muita gastronomia para regurgitar, repuxos novos e 17 rotundas com palmeiras e oliveiras com holofotes e - porque não? – uma horta de celebridades.

Provincianismo, doença incurável. Mas a dois meses de ser capital nacional da cultura e sem nada, rigorosamente nada preparado a não ser agenda de espectáculos, Faro será uma sorvedouro de verbas e quanto mais verba mais espectáculo. Dizem-me que as pessoas, o que querem é espectáculos. Sem dúvida que o provincianismo é uma doença incurável, prolongada e que se disfarça com verbas. Quanto mais verba, melhor se disfarça.

Carlos Albino

quinta-feira, 21 de outubro de 2004

SMS 76. Faro perdeu a oportunidade

21 Outubro 2004

Cinco meses perdidos. A dois meses de Faro iniciar, enfim, a saga de, por um ano, ser a Capital Nacional da Cultura, pouco ou mesmo nada se vê à vista desarmada, a não ser a demissão de António Lamas e, a seguir, a nomeação de António Rosa Mendes para o cargo de presidente da comissão organizadora. Um professor de história, portanto, substitui um engenheiro civil e com isto perderam-se, desde Maio, cinco meses cruciais para a organização do acontecimento.

Equívocos. Desde o início, alimentou-se o grave equívoco de reduzir a «capital da cultura» a um «festival de espectáculos culturais». Depois, equívoco mais grave, fez-se passar a ideia de que esse festival teria de coincidir com a época alta do turismo e portanto feito em função do turismo - uns escassos dois meses e meio. Faro nem piou.

Haja dinheiro! Ora fazer festivais e montar festivais, é coisa fácil – basta haver dinheiro e instalações. Havendo dinheiro, contrata-se um bailado de Moscovo, dez violinos a Londres, um fagote a Paris, uma potente voz a Milão e, sobrando algum, claro, lá teremos uns coisitas de teatro, umas cantorias em português, umas pitadas de cinema, umas borradas de pintura e, imprescindivelmente, o monumental fogo de artifício na Doca. E chamar-se-á «capital» a isto que não passará de estendal.

Convite ad hoc. Nos dois meses que faltam para 2005 começar, António Rosa Mendes pouco poderá fazer. Com rigor, não poderá fazer nada. É evidente que poderá gerir o estendal de cultura para a época de verão» mas não conseguirá erguer uma Capital Nacional de Cultura e nem o inusitado convite (segundo me disseram mas não acredito porque se acreditasse, António Lamas pediria a demissão) feito, em São Paulo, pela própria ministra Maria João Bustorff à cantora Lena d’Água para esta ser comissária de Faro para a música ligeira (coisa que a cantora terá aceite, ali, imediatamente) salvará a questão. Aliás, a ser isso verdade, inquinou a questão.

Erro tremendo. Faro perdeu a oportunidade para, com serenidade, construir a Cultura que lhe falta. De uma Capital 2005 alguma coisa ficaria, de um Estendal de dois meses não ficará nada porque acabada a festa, desarma-se a igreja. Por uma vez, dou razão aos homens do futebol que vêem na bola o espelho da sociedade: Faro está na terceira divisão e a zero. Foi um tremendo erro de política cultural e pouco adianta fazer aproveitamento partidário desse erro. O que está perdido, perdido está.

Carlos Albino

quinta-feira, 14 de outubro de 2004

SMS 75. Foi a pirataria perfeita no Algarve posto a saque

14 Outubro 2004

Ouvi, observei e comprovei. O extenso barrocal algarvio foi palco da perfeita pirataria. Hordas de ciganos pilharam alfarrobas, milhares e milhares de arrobas de alfarrobas, devassando propriedades, ameaçando donos de terras – na maioria já velhos mas resistentes e sabedores do que representa ou deveria representar o verdadeiro ouro negro do Algarve. Uns, pelo que ouvi, impantes como piratas vieram em verdadeiros raids pela Via do Infante do outro lado da fronteira, cobertos pelos «primos» abancados deste lado – aliás abancam onde lhes apetece. Outros, pelo que observei e comprovei, são os próprios «primos». Roubaram tudo pelos campos, foi um verdadeiro saque a que as populações assistiram indefesas e apavoradas.

Brutos piratas aliados a finos piratas. Também me disseram que os intermediários terão feito um pacto – o de não comprarem um quilo que fosse de alfarrobas a tais piratas e à evidência produto do saque. Mas qual pacto! Alguns intermediários de frutos secos não ficam atrás dessa horda e aí temos os milhares e milhares de arrobas de alfarrobas roubadas a engordar os cofres da pilhagem mais fina mas não menos pirata pela avidez bruta do proveito. Tudo pago informalmente, sem papéis e à margem das leis que regem as transacções comerciais mas também tudo depois dissimulado com tosca engenharia contabilística que caba por ser eficaz num Estado sem fiscalização ou em que os fiscais poderão fazer parte do «esquema». Muita gente não sabe nem calcula, mas estamos a falar de um negócio de milhões de que dezenas de indústrias tecnologicamente sofisticadas (como a suíça) necessitam.

Desmotivados. Os donos de terras, abandonam as árvores. O que é que a GNR pode fazer? Nada. Nem tem meios, nem tem treino e muitas vezes também não tem motivação porque a nossa Justiça, para além de já de si infantil, tem os tribunais cada vez mais infantilizados. Os piratas riem-se da GNR e dos juízes, porquanto agem e têm a pose de soldados que se acham com direito ao saque. Aliás agiram sem qualquer interposição das forças da ordem.

Já. Ora o mês de Julho de 2005, quando começa nova época da alfarroba, começa agora, hoje mesmo. As polícias, sobretudo a judiciária, levaram anos e anos para acabarem com o tristemente célebre «casino do figo» que a pirataria fina manteve para especular preços e, tal como máfia organizada, esvaziar os bolsos dos lavradores. Não ficou ninguém preso nem nenhum nome ficou manchado, mas enfim, isso acabou pelo menos à vista desarmada. Como Guterres outrora dizia, os ricos ficaram mais ricos e os pobres mais pobres como se dizer isto bastasse. Não andarei longe da verdade se disser que a pirataria de 2004 já está a preparar a de 2005. As autoridades têm que agir, já.

É claro. Isto que acabo de escrever não deve dizer nem incomodar muito aqueles para quem o Algarve começa nas pirosas leoazinhas da portada da sua vivenda à beira-mar e termina no campo de golfe, por entre celebridades. Mas já deve dizer alguma coisa aos que sabem o que a alfarrobeira representa ou deveria representar na economia regional. O que este ano aconteceu foi demais. A paciência de muitos esgotou-se e não digo o que muitos pensam fazer se o caso se repetir em 2005.

Carlos Albino

quinta-feira, 7 de outubro de 2004

SMS 74. O Sr. X não foi condenado, mas toda a gente sabe

7 Outubro 2004

Patifes outrora, deuses depois. Na vida em sociedade, neste nosso dia a dia em que todos nos suportamos, tem que ser, deve ser: a presunção de inocência é um valor a acautelar e a respeitar integralmente – ninguém deve ser apontado como autor de um crime, de qualquer ilícito e ou de qualquer ilegalidade sem que seja condenado em tribunal, pelo que, haja paciência, temos de confiar na justiça. Mas na vida política não será bem assim: o tribunal, aqui, não é dos juízes mas sim do eleitor, dos cidadãos e tem prazos marcados para as «audiências» que são as eleições. No entanto, não só o factor tempo e a consequente perda de memória das coisas, mas também as técnicas de comunicação, de imagem e de publicidade política, subvertem as regras, admitindo-se que um patife político de outrora, esquecidas as suas actuações publicamente recriminadas, surja tempos depois e após estratégica travessia no deserto, como um santo, um salvador público. O Algarve não tem muita gente deste género, mas tem.

Experiência autárquica. E claro, quando alguém ousa rememorar o passado, ele, o patife invoca que nunca foi condenado em tribunal. E será verdade. Primeiro porque ninguém apelou ou denunciou à Justiça, segundo porque, de política se trata, os partidos abafam e finalmente, os poderes públicos que fazem as leis não fiscalizam suficiente e eficazmente a aplicação das mesmas leis. Há sempre um compadre a interferir na fiscalização, um amigo bem colocado a obstruir o processo, um burocrata conivente a deixar andar as coisas até à prescrição ou arquivamento. A doutrina que se pode extrair da experiência autárquica no Algarve vai nesse sentido que é, afinal, um sentido de frustração do eleitor quando é confrontado com a ressurreição do patife de outrora. Chamemos-lhe o Senhor X. Sim, o Senhor X que não foi condenado mas toda a gente sabe... E porque é que ninguém denunciou? Bem as provas da corrupção activa normalmente ficam nas mãos do corruptor passivo. Ambos são coniventes e assim se estraga a política.

Carlos Albino